Coração de Papel.


“Você me entregou um coração de papel.
        
Era um pequeno origami, feito a partir de uma folha de caderno pintada a lápis de cor vermelho. Alguns vincos se destacavam nas suas superfícies, como se as dobraduras houvessem sido erroneamente feitas várias vezes, antes que a forma final fosse alcançada. Chegou num dia qualquer, pelo correio, em uma caixa amarela comum. Nenhum bilhete, nenhuma plaquinha, nem mesmo o nome seu escrito em grafite acinzentado em uma das faces mal coloridas. Mas eu sabia a quem pertencia. Sabia que era seu. Tinha aquele seu cheiro que eu nunca havia sentido.
        
Por muito tempo eu pensei que ele fosse uma piada, ou até mesmo alguma forma de me mandar uma mensagem subliminar. Talvez você não me amasse tanto assim, ou tivesse medo de entregar-se por completo. Talvez você houvesse produzido várias cópias desse coração, para distribui-lo entre as muitas pessoas inocentes que passassem pela sua vida, e não lhe conquistassem a cordialidade mais profunda. 
       
Era engraçado carrega-lo por aí. Enquanto usei-o pendurado na minha mochila, exibindo-o a todos, escutei as mais diversas teorias e opiniões. Você bem entende como eu não realmente sabia o que significava, pra você, o tal do coração de papel, mas era tudo que eu podia ter vindo da vossa pessoa. Protegia-o quando muito chovia, e a água ameaçava sua integridade, e o tomava nas mãos quando o espaço era muito apertado para que sua forma não se desmontasse. Guardava-o numa caixinha sobre minha mesa de estudos quando não estava fora. Gostava de mantê-lo sempre perto de mim. Mesmo que fosse tão frágil, de papel.
       
Só entendi que era real quando você o pediu de volta.
       
As circunstâncias já me indicavam que as coisas entre nós não eram mais as mesmas, mas nunca pensei que teria que lhe entregar aquele coração. Era tão feio, mal feito… Tão meu. Tão meu havia se tornado, que quase amava mais àquele amontoado de dobraduras do que a ti. Não sei se você ainda se lembra, mas quando foi à minha casa, coloquei-o em suas mãos dentro da caixinha de vidro. Tinha medo que você o estragasse.
      
Mal sabia eu que eu o estragava, a cada dia.
       
Toda a sua fragilidade, sua simplicidade, sua delicadeza e suas peculiaridades se refletiam naquele papel mal colorido. Era parte de ti. Eu o isolei de sua fonte de vida, e não percebi que seu brilho se apagava, sua força morria, seu pulsar desaparecia. Sua essência morria. Ambos morriam.
       
Quando virou as costas para mim, lágrimas pesadas rolaram pelo meu rosto. Tanto tempo tentando cuidar de um coração de papel, que eu julgava ser uma piada tua. Que fosse ser pra sempre meu.
       
Sempre sentirei falta do coração.
             
        
Sempre sentirei sua falta.”

O Frio, a Chuva e eu.


Rain falls

Acordei mais cedo que queria. Meus olhos estavam pesados e meu corpo doía. Sentia que várias horas do meu sono me haviam sido roubadas. No entanto, bastou um suspiro fundo para perceber que, após tantos dias mergulhados em um calor infernal, chovia, e ventos frios sopravam.
     
Nem mesmo calcei sapatos. Levantei-me da forma que estava, pisando no chão frio, com meu pijama de dias quentes, e abri a janela da sala. Algumas gotas de água gelada pingaram no meu rosto, antes que eu fechasse o vidro e me apoiasse na parede. Fiquei observando a chuva caindo por bastante tempo. Vez ou outra bocejava, pois o sono insistia em me assombrar, e em alguns momentos eu parecia me desligar da realidade por poucos segundos, como se o cansaço me cobrasse a noite mal dormida a prestações. 
      
Apesar de tudo, não planejava ser vencida pelo esgotamento. Estava frio, e assim meu coração se aquecia.
      
Nunca fez muito sentido que, quando as temperaturas da cidade baixavam, meu ser acordasse e desabrochasse. No entanto, a sensação de ser abraçada pelo mundo independia de razão. Era como se a vida me tomasse nos braços e cuidasse das minhas feridas de guerra, usando a chuva para lavá-las do sangue e da terra. Era uma purificação.
      
Sentia como se pudesse finalmente chorar todas as lágrimas que o calor havia feito evaporar do meu coração. Estava angustiada, então as coloquei pra fora e era como se o peso do suor fosse retirado de mim. Minha postura, tão recurvada, foi se endireitando lentamente, até que eu consegui dar um sorriso mui sincero, como não havia conseguido sorrir nas últimas semanas.
      
Observei o cair da chuva por ainda algum tempo, refletindo sobre esse ciclo da minha existência que estava se reiniciando. De frio em frio, de chuva em chuva, seria sempre assim.
      
Voltei para a cama e deitei para dormir em paz, com o tintilar das gotas d’água na janela e no asfalto antes tão quente me embalando. O vento gelado que passava pelas frestas da janela do meu quarto fechou meus olhos.
[Não vá embora, frio ♥]

Peggy, Maggie, Margareth.


Margareth. 
     
Margareth era Margareth.
     
Tinha nome, mas não o queria por completo. Tinha jeito de quem esconde alguma coisa, mas até esse jeito ela escondia dos outros. Mesmo depois de tantos anos, eu ainda sentia que faltava muito para conhecê-la realmente. Uma metamorfose ambulante de verdade. Raul a adoraria.
     
Vamos chamá-la aqui de Peggy. Que é como ela realmente gosta.
    
Peggy.
    
Pois bem, Peggy era Peggy.
     
Nossa amizade era difícil. Bonita, mas difícil. Unida, consolidada, mas ainda assim. Éramos diferentes demais. Muitas vezes, muito parecidas. E, mesmo dessa forma, bagunçada e incerta de sermos próximas, seguíamos nos aproximando ainda mais. Após tantos anos, ela foi o mais próximo que eu havia chegado daquela amizade idealizada de infância.
     
Foi a irmã seis meses mais velha que eu jamais teria. Foram mais broncas que recebi do que palavras amigas, em várias ocasiões – mas isso só comprovava nossa força. Sonhávamos e desejávamos coisas parecidas. Vez ou outra, as mesmas. Ou ainda, os opostos completos. Sempre seria engraçado argumentar sobre o que era melhor, ou falar de memórias nostálgicas das diversões que compartilhamos em anos passados.
     
“Peggy”, eu costumava dizer, “Vamos nos casar juntas.”. “Não, não vamos”, ela respondia. “Vou me casar muito tarde pra isso”.
     
Era sempre assim, meu coração partido, porém otimista, e seu coração partido, porém realista.
      
Houve também aquele dia, em que eu chorei. E todos aqueles outros também. Peggy tinha medo da vida real em tantos momentos, mas nos mais reais ela se abria e deixava minha tristeza entrar, pra que me deixasse em paz por um momentinho. Devolvia pra mim uma infelicidade menor. Nunca soube certamente se ela diminuía devido ao seu coração bondoso, ou se apenas roubava alguns pedaços para si.
      
Imaginávamo-nos idosas, sentadas em cadeiras de balanço, falando da vida e das coisas que conquistamos, escutando músicas antiquíssimas que nos fariam lembrar a juventude. Rugas profundas nas expressões, bochechas flácidas por tanto rir, dedos calejados por tanto digitar nossas risadas e nossa vida entre as linhas de um conto ou poema.
      
A Literatura nos salvaria das dificuldades. E nós salvaríamos uma a outra da solidão.
[Feliz Aniversário, Peggy ❤ Digo, Paula <33]

Empatia – Desiludido Iludido.


Meu lado racional se manifesta como um homem de 30 anos, que vive assumindo vários papeis, por pura diversão. Hoje: Desiludido Iludido.
“Eu nunca havia acreditado plenamente na infelicidade. Sempre pensei que era nada mais do que uma percepção distorcida de uma realidade menos brilhante do que nossas vãs esperanças pediam. No entanto, não é necessário muito mais do que alguns anos pra que essas ideias de um mundo mágico e bonito desapareçam. Quanto mais se cresce, mais se vê do mundo, e menos se gosta nele.
     
Eu gostaria de ter sido a exceção. Na verdade, até bem pouco tempo, eu acreditava ser a exceção. Mas era óbvio que isso não duraria além dos 20 anos. Esse é o prazo de validade da maioria das ilusões infantis. Depois disso, infantilidades não passam de tentativas inúteis de recuperar aquela sensação gostosa e colorida de acreditar que vivemos numa terra de gente boa, que basta procurar por elas, que ainda são a maioria nesse mundo. Dulcíssima ilusão.
     
Gente boa não existe. Naturalmente, naturalizada, gente que se desfaz em bondade, alegria e contentamento, não existe. Existe gente esforçada, gente bem treinada, gente interessada, gente querendo gostar do mundo e das pessoas. Gente muito esforçada em agir com bondade. Não me venham com teorias filosóficas pra tentar provar que estou errado. É assim e ponto. Já sou velho o suficiente para não me apegar mais à essas discussões vãs, que só geram discórdia.  Discórdia não é algo que me interesse. Estou cansado, cansado. Cansado.
     
E nem mesmo essas pessoas esforçadas em ser boas podem ousar ser chamadas “feitas boas”. Porque aquele maldito ímpeto de matar alguém que te olha e te responde mal está lá ainda, só que controlado. Dr. Banner poderia colocar o Hulk em coma, que ele não deixaria de ser Hulk. Dormir não quer dizer matar. E nem mesmo matar pode significar morte. Principalmente em relação aos sentimentos e às ideias. Sempre tem algum filho de mãe pra reunir as esferar do dragão e ressuscitar tudo aquilo que deveria ter sumido. 
     
Vocês todos sabem muito bem do que estou falando. Já até se lembraram de situações em que tudo isso fez sentido nas as vidas ridiculamente maldosas e hipócritas.
     
Vamos parar com a tal da hipocrisia. Não há pessoas boas.
     
Existe apenas o coração. Apenas o coração.”

Pequena Lucy


Pequena Lucy, pequena Lucy;
          
Já passou das onze horas,
E o teu olhar não descansou.
     
Já passou da meia noite,
E o teu canto se cessou.
     
Já passou da uma hora,
E o teu peito não parou.
     
Já passou das duas horas,
E o vento não soprou.
     
Já passou das três horas,
E o teu coração voou.
      
Já passou das quatro horas,
E o teu sorriso se apagou.
     
Já passou das cinco horas,
E o teu choro não cessou.
      
Já é quase amanhecer.
     
O teu sono não chegou.
       
E a vida não parou.

Alegoria da Taverna – Capítulo IV

[Para o capítulo anterior, clique aqui!]

     Seguiram-se momentos pandemônicos. Alguns gritavam por seus nomes. Komatsu colocou as mãos sobre o rosto, e suspirava de forma tão alta que parecia uma máquina. Ana queria sair correndo procurando pelos dois, mas tropeçou em uma pedra e caiu em cima de Marcelo. No clima tenso, começaram a discutir energicamente. Ele gritava, ela gesticulava e mexia a boca de forma nervosa. Sendo de alturas parecidas, tentavam se impor um sobre o outro. Não soubemos se deveríamos ou não interferir até que Ana fez menção a pegar uma pedra que havia no chão, e usá-la para substituir os chinelos que costumava usar para atacar pessoas imbecis. Nasser tentou segurá-la, mas o movimento já havia quase se finalizado. Por pouco, não atingiu o Marcelo. Bateu em uma árvore e foi parar sobre um tufo de grama. O tronco, aparentemente oco, fez um som ecoar por toda a área.
     – Isso já está ficando ridículo! Ridículo! – Paulino estava perdendo a paciência, ainda tão cedo na jornada. – Se eu tivesse meu arco-e-flecha aqui agora, estariam todos mortos. TODOS VOCÊS.
– Ei, não fui eu quem saí caindo em cima das pessoas! – Marcelo falou de forma gritada, encarando Ana. Gabriel e Komatsu os puxaram e seguraram, impedindo que brigassem.
     – Vocês parem todos com essa bagunça! Já deu de discussão! Nós não vamos encerrar nada disso aqui se não nos organizarmos, e pararmos com as briguinhas bestas! Já não estamos com problemas demais? Não vamos sair do lugar nunca assim! – Komatsu ainda segurava Marcelo pelo braço. Estava com a expressão bastante franzida, e seus olhos puxados pareciam ser ainda menores.
Ficamos em silêncio mais uma vez. Aquilo era um jogo. Devíamos jogá-lo da forma correta. Nasser estava sentado em uma pedra próxima a mim, lendo o mapa. Observei-o discretamente por trás.
     – Luísa, quer olhar o mapa? – Ele se virou de repente. Meus olhos se esbugalharam ligeiramente.
     – Ah, é, não, não, não precisa. Não precisa. Eu só queria saber das… Das… Sabe, das… Perspectivas. Das perspectivas do caminho.
     – Bom, já que é assim – Virou o mapa pra que eu pudesse enxerga-lo melhor – Isso é que é estranho. Antes do clarão, o mapa indicava claramente que deveria haver um descampado em 20 metros, mas – Ele se levantou, e apontou o caminho – Nem dentro de uns 100 metros encontramos um. – Estava certo. O corredor de árvores sumia de vista, tão longo.
     Tomei o mapa em minhas mãos e tentei entende-lo. Talvez houvessem interpretado incorretamente as direções, pensei eu. No entanto, algo parecia estranho. Não conseguia nos identificar ali. De forma nenhuma.
     Uma pedra me atingiu por trás. Virei-me soltando alguns xingamentos deselegantes, mas era apenas uma forma de Ana me avisar que tinha algo a dizer. Aproximei-me dela que, usando um graveto, havia escrito numa pequena área arenosa do solo “Não estamos no mesmo lugar”.
     – “Não estamos no mesmo lugar”???? – Falei em voz bem alta. Todos se viraram para nós. Ela confirmou com a cabeça.
     – Claro que estamos no mesmo lugar. Como poderíamos ter saído da floresta? – Gabriel parecia confuso. – Olhe ao nosso redor, estamos em uma floresta! O que poderia ter acontecido? Uma eversão?
     – Isso mesmo. – Johnny surgiu em meio às árvores, e nos deu um baita susto. Segurava um livro nas mãos. – Ocorreu uma eversão de cenário. Estamos na mesma floresta ainda, mas em um patamar diferente.
     – E como você sabe disso? – Marcelo permanecia preguiçosamente sentado sobre uma pedra.
     – Peguei esse livro na biblioteca do Burgo há uns anos. – Ergueu-o, mostrando a capa. “Bosques do Oés-Sudoeste – A Terra dos Magos” – Por algum motivo, veio comigo. Reconheci alguns cenários descritos aqui, e resolvi procurar por algo de útil. Há um capítulo inteiro sobre magos como o Damian. São descritos como “Lagostas mágicas”. As garras são grandes e aparentes, e você sabe que vão te fazer mal. Mas insiste em acha-los inofensivos. – Todos trocaram olhares. Desconhecendo a história da chegada de Damian à taverna, não desviei o olhar.
     – Então esses são os Bosques do Oés-Sudoeste? – Marcelo continuava indagando Johnny.
     – Não, Marcelo, não exatamente. Estamos na área mágica particular do Afetadíssimo. Fica localizada… Dentro da magia dele. E é de uma energia altamente poderosa. Nem mesmo o poder do Mestre dos Magos consegue alcança-la. – Correu os olhos rapidamente pela área, depois voltou-se para Marcelo. – Se eu fosse você, não se sentaria sobre as pedras. Nenhuma delas.
     Àquela altura, quase todos haviam se sentado sobre pedras. Levantaram-se imediatamente. A pedra sobre onde Paulino estava desapareceu.
     – O quê exatamente acabou de acontecer? – Seus olhos estavam arregalados, e seu corpo estava tenso. Estávamos todos confusos.
     – As pedras são os portais. Até mesmo as menores. Um dos dois, Willians ou Ariane, deve ter pisado em alguma. Agora, alguma coisa aconteceu para que nós passássemos para o próximo cenário também, e para que houvesse uma separação. Ainda não consegui descobrir.
     Observando melhor, as mudanças na floresta eram notáveis. As árvores eram mais altas e de copas menos fartas. O céu era mais escuro, e o tempo parecia mais nublado. Até os sons dos pássaros soavam mais assustadores e macabros. Ana pegou em uma das minhas mãos, segurando-a fortemente. Antes que eu percebesse, Gabriel segurava a outra.
     – E onde conseguimos um mapa desse novo cenário? Não dá pra atravessar sem isso. – Komatsu estava ao lado de Johnny, inspecionando o livro.
     – Aí é que está. O mapa de cada cenário é protegido pelo Guardião da Floresta.
     – Guardião? Tipo os outros guardiões, grande e malvado? Era só isso que nos faltava! – Gabriel apertou ainda mais minha mão.
     – O livro diz que ele se chama “Massacote”, e que sua maior característica é aparecer quando não é convidado. Diz também que essa é a chave para encontra-lo. – Enquanto Johnny falava, Nasser quebrava galhos de algumas árvores mais baixas. – Eu sinceramente não sei o que isso significa.
     – Talvez seja algo relacionado à não estarmos pensando nele. Temos que ignorá-lo, talvez? – Marcelo procurava alguma árvore que não tivesse espinhos, em cuja superfície ele pudesse recostar.
     – Duvido. Damian não colocaria um desafio tão complexo assim bem no início do jogo. Ele quer nos ver atingir os níveis mais profundos que conseguirmos. Faz parte de sua personalidade doentia. – Um relâmpago inesperado surgiu. – DOENTIO! – Johnny gritou para os céus. Choveu abundantemente por uns oito segundos.
     – Johnny, mais alguma coisa de útil desse livro? – Tentávamos nos secar, ensopados como estávamos. Sentia meu nariz coçar.
     – Muita, muita coisa. Pode ser nossa salvação. – Ele falava enquanto apertava os cabelos, tirando o excesso de água. – Na verdade, acho que poderíamos atrasar mais um pouco nossa caminhada, para que eu possa falar de outras coisas. – Pausou e olhou para os céus. Escureciam rapidamente.
     – Bom, se realmente vamos começar a levar isso a sério, e jogar no modo hard – Nasser se aproximava, pingando, carregando madeira. Tropeçou em uma pedra. Conseguiu equilibrar-se, mas estávamos todos observamos a situação de forma tensa. Ela se movimentou levemente, até encostar-se a uma outra pedra próxima. Ambas desapareceram.
     Um minuto de silêncio.
     – Bem… – Nasser mantinha olhos ligeiramente esbugalhados. – Como eu dizia. – Pigarreou. – Precisamos de alguns instrumentos de sobrevivência. Podemos usar essa madeira como cajados, para espantar as pedras, ou armas letais, pra perfurar e matar os inimigos. Cada um escolhe a melhor maneira. – Jogou tudo no chão. Fomos nos aproximando da pilha.
     – Galera, eu queria pedir desculpas. – Komatsu começou a falar de repente. Estava distante, não mexia nos materiais conosco. – Eu devia ter impedido que Damian entrasse na Taverna. Achei que ele nos faria bem, afinal, é isso que eu pensei que os magos faziam. Perdi o controle da situação. E perdi minha força.
     A expressão em seu rosto era realmente muito desanimada e arrependida. Eu ainda me recordava de, no primeiro dia – ainda que em clima de descontração – jurar lealdade aos nossos Taberneiros. Aproximei-me dele e coloquei uma das mãos sobre seus ombros, em gesto de apoio.
     – Você impõe respeito naturalmente, não precisava ter o corpo de um viking. – Ele sorriu em retribuição. – Na verdade, era mais complicado te respeitar. Era quase cômico. – Nasser soltou uma gargalhada. – Todo mundo te perdoa. – Virei-me para o grupo, e todos balançaram suas cabeças, em confirmação. – Vamos lá, temos uma taverna pra salvar.
     Todos demonstraram apoio à causa, e disseram algumas palavras ao Taberneiro. Por um momento, tudo ficou em paz. Usávamos algum cipó para improvisar espadas com a madeira, e fazíamos o som de sabres de luz enquanto “treinávamos” nossas habilidades. Quando se tornou noite completa, Johnny usou seu isqueiro e papel que arrancara das beiradas não ilustradas do mapa para acender uma fogueira. Não sentíamos fome, e era difícil de explicar.
     Eu e Marcelo simulávamos uma luta quando vi duas formas se aproximando na escuridão, em meio às árvores, meio cambaleantes. Soltei um grito. Conforme se aproximavam, a pouca luz mostrava que estavam vestidos de vermelho. Não sabíamos o que fazer. As espadas estavam empunhadas (e foi uma cena consideravelmente engraçada, se não trágica, diário).
     Estávamos prestes a atacar quando os rostos foram iluminados e vimos que se tratavam de Jaime e João Pedro.
[To be continued]

Alegoria da Taverna – Capítulo III

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     – Acalme-se, Ana, por favor. Nós precisamos nos organizar. Quando você notou que não conseguia mais falar? – Nasser parecia o mais calmo no momento, e intermediava a situação. Tentávamos nos entender, mas a mudez a deixava extremamente nervosa. Alguns já haviam cedido ao cansaço, e se acomodavam em meio à grama e pedras. Outros mantinham a impaciência, e permaneciam em pé.
     – Gente, nós precisamos de papel e caneta, ou carvão. Qualquer coisa que ela possa usar para escrever, ou desenhar, porque não temos tempo suficiente para combinar um código que substitua a fala. – Minha cabeça doía incessantemente. Poucos minutos se passavam, mas a atmosfera que nos envolvia fazia parecer horas. A floresta era colorida, porém ameaçadora. Uma névoa não muito densa parecia estar por todo lugar, se misturando à fumaça de cigarros. Sentíamos como se um monstro pudesse sair detrás qualquer moita.
     – Precisamos, no mínimo, de uma estratégia simples, para tentarmos ao menos sobreviver. – Johnny já estava fumando o sexto ou sétimo. – Parece que a lógica é bem simples, mas aquele mago afetado não permitiria que fosse simples assim.
     Uma opressão pairava pelo ar e nos sufocava. Ana chorava, Ariane chorava, eu chorava. E qualquer um daqueles machões de cabelo recém-cortado certamente choraria, não fosse o orgulho. Apesar de todas as piadas, nossa situação não era das melhores. Algumas corujas piavam numa árvore próxima, apesar de ainda ser dia.
     – E o quê a gente faz agora? – Ariane disse, entre soluços, sentada sobre uma pedra.
     Organizar uma tática de ação? Tentar fazer com que a Ana pudesse falar novamente? Continuar chorando? Eu realmente não sabia. Um vento não parava de soprar.
     – Olha, seu bando de feio, só tem uma coisa que dá pra gente fazer… – Willians irrompeu, cheio de uma energia puxada de não sabemos onde – Temos que começar a andar. Vamos lá, levantem essas bundas do chão, antes que eu mesmo faça isso. – Nos encarávamos, apoiados em muito musgo escorregadio, decidindo e pesando as consequências. – ESTOU FALANDO SÉRIO OK. Vamos lá, Maligna, me dê sua mão, levante daí.
     Aceitei sua ajuda, e levantar-me foi como uma injeção de ânimo. Parecíamos muito mais decididos e preparados para seguir em frente – ainda que não passasse de uma aparência, no nosso íntimo.
     – Não temos escolha, galera. Por nós, e pela Taverna! – Lord Komatsu esbanjava autoridade, apesar da aparência tão mais frágil, com a qual ainda nos acostumávamos. – Willians, acompanhe a Ariane. Luísa, Gabriel, fiquem com a Ana. Nasser e Johnny cuidam desse mapa. Marcelo e Paulino vigiam as nuvens. Algo me diz que Damian não nos deixará em paz tão cedo assim.
     Puxei ar profundamente. Um brilho avermelhado intenso irradiou do Sol já um tanto apagado, e pressentimos que havíamos superado um primeiro desafio.
Agora só faltavam todos os outros.
•••
     Estávamos caminhando floresta adentro havia alguns minutos. A primeira parte do caminho era relativamente óbvia – as próprias árvores estavam especialmente afastadas naquele trecho, praticamente retilíneo. Suas copas eram tão fartas que coroavam nossos passos e nos impediam de observar o céu. Marcelo e Paulino não andavam diretamente conosco – estavam em meio à mata, procurando vestígios das nuvens e do Sol.
     Eu não saberia dizer se era um efeito direto das tantas horas passadas dentro da taverna – ainda que eu houvesse passado alguns dias fora da mesma –, mas me sentia altamente estranha caminhando por aquele lugar. Talvez fosse também consequência das árvores que pareciam nos escutar e vigiar, ou do farfalhar nada convidativo das folhas, mas é tudo relativo e circunstancial quando sua própria vida está em risco. O mais prudente era me acostumar àquela atmosfera. Até porque, pelos meus cálculos – meramente superficiais –, ainda estávamos incrivelmente longe da tal construção à qual devíamos chegar.
     À exceção de alguns comentários que Johnny, Nasser e Komatsu trocavam à respeito do caminho e do mapa e Marcelo e Paulino, a respeito da procura pelo céu (além de alguns sons horríveis que a floresta parecia emitir), estávamos em silêncio. Eu até suporia que se a própria Ana não estivesse muda, também estaria calada por vontade própria.
     Teríamos permanecido ainda assim por algum tempo. Porém, diário, você sabe que nada fica parado e quieto por muito quando nós estamos envolvidos na situação. Sempre há algo a ser dito, ou alguma tragédia para ocorrer.
     Foi mais ou menos o que acabou ocorrendo.
     Caminhávamos sem muita cautela, concentrados em qualquer coisa à exceção do que fazíamos. Ana, vez ou outra, pigarreava, na esperança de ter sua voz de volta. Komatsu às vezes se virava para nos dar um sorriso de incentivo, e acabava por quase tropeçar em algumas pedras que estavam pelo caminho. Alguma risada leve. O som de alguns galhos sendo quebrados por Marcelo e Paulino, enquanto atravessavam o mato. Vez ou outra sentia estremecer meu corpo, pela sensação de que algo havia passado correndo, roçando-me as pernas. Outros também estremeciam. Passamos por ruínas de pequenas construções, vários tijolos espalhados. E o corredor de árvores parecia infinito.
     Mais tarde ficamos sabendo que o mapa indicava uma mudança de rota dentro de alguns metros. Mas nossos planos foram forçadamente modificados quando, entre uma brisa gelada e a luz poente de Sol que passava por entre as folhas das árvores, o chão sob nossos pés tremeu. Um clarão surgiu e nos cegou por alguns segundos. Quando recuperamos a visão, Ariane não estava mais lá. Nem Willians.[Para o capítulo seguinte, clique aqui!]