Carta aberta aos amigos – Eu acredito em você.

     O ser humano é uma máquina de contradições ambulante. Minha falta de conhecimento científico sobre o assunto me impede de saber se existe alguma teoria do comportamento que explique isso, mas, enfim, contradições. Nós somos naturalmente inclinados ao desacordo. Isso porque somos feitos de razão, emoções, e sensações; mente, coração e corpo. E não precisa ser muito reflexivo pra entender que nossa mente, nosso coração e nosso corpo querem coisas totalmente diferentes, o tempo todo. O desacordo entre as nações, entre os povos, entre as pessoas, começa no desacordo de dentro. Não há coerência, apenas o caos. E a tendência ao caos.

     Por isso, criamos tantos códigos pra nos comunicar e regulamentar, buscamos tanto pela Verdade, procuramos um prumo que nos alinhe, ou pelo menos crie condições de estarmos alinhados um ao lado do outro, ainda que o caos de dentro permaneça o mesmo. Existe alguma virtude no fingimento em sociedade, porque ele disfarça nossa total incapacidade de viver em paz (eu já até escrevi um pequeno parágrafo sobre como a falta de empatia evidencia a falácia da vida em sociedade). Cada indivíduo é um caos só.

     É por isso que as pessoas se machucam o tempo todo. Mente, coração e corpo em jogo, entre pais e filhos, irmãos, amigos, parceiros, casados, solteiros, colegas de trabalho, colegas de classe, conhecidos e desconhecidos passando pela rua; a imprevisibilidade de cada linha do tempo se encontrando com outras no lugar e na hora errados. Meias-verdades contraditórias tentando encontrar algum ponto em comum. O caos que há em mim saúda o caos que há em você – e algo explode no meio do caminho. 

     Um dos maiores triunfos da individualização das referências na sociedade pós-moderna foi transformar a geração da comunicação numa geração falha em comunicação. A multiplicação dos contatos evidencia cada vez mais o caos dentro de você. Numa palavra, numa mensagem, um olhar, um gesto, uma imagem, algo dito ou não dito, as pessoas conseguem construir ou destruir pontes, abrir ou fechar pra sempre portas, porque são tempos intensos, e ninguém tem tempo pra se demorar uns com os outros. Sua mente machuca o que seu coração ama, seu corpo rejeita o que sua mente aprecia, seu coração rejeita o que seu corpo quer. E, no fim, alguém sempre sai prejudicado – um, ou todos. É o preço.

     É muito confortável a posição de quem analisa as pessoas de fora, mas não repara nas próprias mãos sujas de sangue, ou nos buracos de bala furados no peito. Entre mortos e feridos, não se salvaram todos, e tanto eu quanto você fomos culpados de uma guerra que não acaba quando eu e você morrermos – a guerra do ser contra o próprio ser, seu ser interior, e todos os seres tentando ser, um dia de cada vez ao nosso redor. Eu simpatizo com a sua dor, amigo, porque ela sempre dói, ou já doeu, ou doerá em mim. E eu simpatizo com a sua culpa, porque a culpa sempre é, ou foi, ou será minha. Já disse o poeta que “o mundo gira, e vacilão roda”.

     A Bíblia me diz que eu não posso amar meu próximo verdadeiramente enquanto não amar a mim mesma. Eu te pergunto, quem poderia amar o caos que nós somos? Sem romantizações, eu acho bem improvável, porque o caos sempre machuca, e é machucado. Só me resta torcer por tudo aquilo que eu posso ser, quando reconciliar cada parte de mim e da minha história, pra que possamos viver em paz – ainda que seja um trabalho de uma vida toda. E ainda que a convergência completa seja apenas a expectativa do fim dos tempos, a esperança da plenitude ainda é suficiente. E, se eu posso me amar pelo meu potencial, amigo, eu também posso te amar pelo seu. Não desista nunca de quem você é, por todos os sacrifícios de quem você já foi, e por tudo que você pode ser. Você ainda vai muito longe. Eu tenho certeza. 

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(Mais um) Dia do Amigo.

     For the English version, click here.
     
     Uma campanha bem famosa por aí que defende que, na vida de um cristão, Cristo vem em primeiro, nosso próximo em segundo, e nós ficamos em terceiro. Eu assino embaixo – já me levaram a acreditar que eu só estaria apta a viver em harmonia com a sociedade quanto estivesse bem comigo mesma. Hoje, eu percebo que me aperfeiçoo mais enquanto indivíduo no coletivo, entre as muitas pessoas que me ensinam e a quem eu ensino todos os dias. 
    
     Quando você se muda, e sai da sua zona de conforto, aprende muito sobre si, e também sobre o verdadeiro significado de amizade, parceria, confiança e sinceridade. Situações extremas têm o poder de revelar o melhor e o pior em qualquer pessoa, e uma nova distância revela também qual a verdadeira intensidade das relações que permeiam nossa rotina. Mas você passa muito tempo sozinho também, pensando na morte da bezerra e rolando a lista de contatos do Whatsapp, procurando com quem conversar.
     
     Isso não é necessariamente errado ou ruim. O ser humano é social, mas é essencialmente indivíduo, e no final sempre estamos sozinhos. Eu já fui uma pessoa que se regozijava na solidão, porque era tudo que eu conhecia. Hoje, eu a aprecio em alguns momentos, porém fui abençoada o bastante pra conhecer pessoas que me abraçaram em toda a minha esquisitice e peculiaridade, e tiveram a ousadia de me convencer a quebrar minhas muralhas. As pessoas que eu mais amo, admiro, e quero por perto, são aquelas que conseguem tocar meu coração, aquelas que me fazem falta quando somos só eu e o Espírito Santo sentados na janela, vendo o trânsito da Eastern Boulevard.
     
     Dedico este texto e agradeço à Jesus, meu melhor amigo, aquele que me amou primeiro; à minha família, aqueles que sem sombra de dúvida estarão sempre lá pra mim; aos amigos de sempre, que me amaram desde quando eu não era muito amável; aos amigos que se sentam à mesa com minha família, e são pra mim como irmãos; aos amigos de todos os dias, que desbravam comigo as muitas canseiras dessa vida universitária; aos amigos que são comigo peregrinos nesta terra estranha, que usam meu banheiro e com quem eu divido o pão e como sal; aos amigos de fé de casa, que me abraçaram nos momentos difíceis e me cobrem de orações todos os dias; e aos amigos de fé da minha terra nova, que me dão a certeza todos os dias de que, apesar das dificuldades, finalmente estou encontrando meu lugar no mundo.
     
     Nem toda amizade vai durar pra sempre, mas pode ser incrível enquanto parecer que cabe um “pra sempre” dentro de algumas semanas, meses, uns anos. Sou muito grata à cada pessoa que já fez, faz e fará parte da minha vida. Sou feliz por ter conseguido fazer parte da vida de tantas pessoas, e espero ter conseguido tocar alguns corações da mesma forma que eles me tocaram. Em suma, eu dedico este texto à todos aqueles que me presenteiam com memórias que me fazem olhar pra trás e perceber que estou vivendo uma vida que vale todas as penas. Muito obrigada.
     

    

Casa


     Não existe sentimento melhor que o de voltar pra casa. 
     
     Viajei por tantos dias que havia até me esquecido; o cheiro familiar, os sons que caracterizam, os objetos que nos fazem lembrar, em qualquer lugar, da nossa morada. Viajar, passear, conhecer, reconhecer, descobrir, e enfim redescobrir aquilo que nos foi primário. Casa, acima de tudo, é sentimento. Sensação.
     
     Tenho várias casas. Aquela dos meus pais, e a da minha avó. Algumas casas são visíveis, tocáveis; outras são como um abraço – tão material e imaterial simultaneamente. Um de meus tipos favoritos de casa são pessoas. Pessoas que nos dão a sensação de que o mundo é, magicamente, bom e justo. Mesmo que por um instante. Algumas casas são especiais por terem aquele cheiro emocional de café. Trazem um aconchego e uma nostalgia que confortam, como um cobertor felpudo em noite de frio.
     
     Tenho uma Casa que cheira a orvalho de uma manhã que chega após noite chuvosa. Acho que isso se deve ao fato de minhas estadias temporárias ali sempre terem sido muito atribuladas, cheias de tempestades. Hoje, tudo isso já passou. Já retorno bem menos àquela Casa – justamente agora, que há paz. Mas talvez seja melhor assim.
     
     É bom saber que existe alguém que faz lembrar confusão, mas traz calmaria. Que pode ser tão ou mais negativa quando se está pra baixo – e esse mesmo negativismo pode fazer tão melhor. Casa boa é assim. A melhor Casa é aquela que nos deixa melhor pra voltar a explorar o mundo, e descobrir nossa vida.
     
     Se seu coração fosse uma casa à parte, seria um casarão – maior que já vi. Grande e fortificado – difícil de acessar, difícil de entrar, de ser abraçado pelas suas paredes. Nada de muito estranho. É preciso um cofre que proteja os tesouros que se guardam ali. Acho que amo tanto essa Casa porque ela sempre vem comigo. Há muito tempo. Mesmo em silêncio, mesmo que eu não perceba. A memória de que, em algum momento, irei voltar, me conforta.
     
     Não há porquê em viajar, se não puder voltar pra Casa.
[Feliz Aniversário, Camila ♥]


Dia de Sono


     Hoje acordei cedo, contra a minha vontade. Havia muito a ser feito. Tantos desenhos, tantos trabalhos, tantos textos. Apressei-me em terminar o que de imediato era necessário, para que pudesse deitar-me novamente.
    
     Dormi sem nem perceber.
    
     Sonhei que, sentada em uma sala, pensava sobre a vida.
    
     Está chegando novamente aquela época do ano. Aquela época em que ele se encerra, pra que outro comece.
    
     Todo ano ocorre a mesma coisa. Dúzias de expectativas, centenas de ideias e planos. Doze meses se passam e nada muda. Minha vida continua basicamente a mesma coisa. Engano minha consciência com as mesmas meias verdades e descaradamente minto pro meu coração, dizendo que tudo ficará bem. Ah, vida curiosa essa. Vivemos em ciclos de doze meses. Acreditamos que neles está contida toda a magia da existência.
    
     2012 talvez esteja sendo, de longe, o melhor ano da minha vida (desde 1995). Amadureci a níveis que nunca julguei possíveis. Conheci mais pessoas que jamais havia conhecido dentro de um só ciclo. Algumas terríveis. A maioria incrível, por sorte.
    
     Apesar de tanta positividade, duvido que em um só ano meu coração tenha dado tantas voltas dentro do meu peito, ou tenha corrido tanto atrás do próprio rabo. O maior ensinamento do ano? Pro inferno com a superficialidade e as aparências. Você mesma esconde tanto por trás da sua casca (um pouco mais gordinha que no ano anterior). Dezessete anos depois, finalmente entendeu o quão pouco ela representa.
    
     Fiz uma amiga imaginária também. Mais uma, na verdade.
    
     Estou noiva da Arquitetura. Caso-me em breve.
      
      (Nesse momento, a sala, até então vazia, começou a encher-se de sons. Aos poucos, tomava forma ao meu redor um jantar de Natal de filme estadunidense. Várias pessoas passavam por mim. Algumas me atravessavam. Um senhor de barba branca foi o único a me notar, e a perguntar se eu tinha fome. Disse que sim. Ele sumiu. Todo o resto sumiu também.).
    
     Continuei pensando.
    
     Passeei por lojas decoradas pro Natal enquanto mal havia terminado o primeiro período da faculdade. A maioria acharia isso um saco. Talvez um paradoxo sobre nossa existência atrasada. Eu sento e me agradeço pela greve.
    
     A greve foi bondosa em haver nos escolhido, em haver escolhido 2012. Meu 2012 não estaria sendo tão bom não fosse por ela.
      
      (O vazio da sala começou a tomar formas de uma construção quase medieval. Parecia uma taverna. Vários brasileiros vestidos como vikings passaram por mim. Um japonês magrelo e uma linda de olhos grandes vieram até mim e disseram que já havia passado da minha hora de dormir. Cochilei em sonho. Acordei na vida real).
    
     Sentei-me na cama e enrolei-me nas cobertas – apesar de não estar tão frio assim; estava com fome. Eram 18h. Estava dormindo desde as 11h30. Olhei ao meu redor, procurando os contornos da taverna, e qualquer rosto familiar. Apenas paredes brancas e os móveis do meu quarto. Não gosto de bebidas alcoólicas, mas naquele momento aceitaria qualquer coisa que viesse de lá. Sentia falta.
    
     Tentei pegar no sono mais uma vez, mas já não estava mais tão cansada. Escutei o barulho da televisão ligada na sala. Uma propaganda de Natal, com músicas típicas ao fundo.
    
     A época mais bonita do ano.
    
     Filosofei sobre as renas e até fingi que era um elfo. Convidei meus amigos imaginários a se sentarem comigo na cama. Contei pra eles sobre meu sonho. E sobre meu coração. Falei de todas as pessoas que haviam ido e voltado na minha vida. Abraçaram-me. Disse-lhes que estava encantada. Perguntaram-me o que havia me encantado. Tive medo de admitir para mim mesma, então não quis contar para eles. Mas eles sabiam. Eram parte de mim.
    
     Brincamos de cantar músicas de The Rocky Horror Picture Show, até que caíram no sono. Eu permanecia acordada. Ao fundo, a canção natalina continuava tocando.
    
     Foi quando percebi que ainda estava sonhando.
    
     Um sonho dentro de outro sonho.
    
     Fiquei presa lá por várias horas ainda.
    
     Teria ficado por ainda mais tempo. Porém, tinha um compromisso importante às 8h, no dia seguinte. Não podia perdê-lo.    
    
     Não podia perdê-lo.

Guardados, debaixo de sete chaves.


Ah, mundo. Tão vasto, e enorme mundo.
     
Enorme mesmo. Muitos milhões de quilômetros quadrados. Muitos bilhões de pessoas. Milhares de cidades. Centenas de países. Tantas vidas, corridas, sofridas, vivem e morrem todos os dias. Todos os dias.
     
Eu vivo em uma cidade. Moro com minha família. Tenho amigos do colégio, que agora vejo ocasionalmente, e amigos na faculdade, que vejo todos os dias (e nas madrugadas também, às vezes). Sempre nos encontramos, nos abraçamos, nos irritamos, damos tapas, e brincamos de levar a vida a sério enquanto tomamos um açaí com leite ninho, perto do bloco da Música. E tem também os amigos da igreja, os da escola de inglês, e todos aqueles que a gente acaba conhecendo pelas quebradas da vida.
      
E mesmo com esse tanto de gente ao meu redor, dentro desse meu comprometimento de tornar amigos em irmãos, eu ainda consigo arranjar mais gente pra cuidar e amar.
     
Só que longe de mim.
     
Essas pessoas que a gente conhece sem querer, nos comentários de um blog, ou num grupo no Facebook. Pessoas interessantes (que compartilham dos nossos interesses mais bizarros), a princípio seres aleatórios, mas que vão entrando na nossa vida, na nossa rotina, até que percebemos que já se tornaram como companhias congênitas, daquelas que você quer levar pra vida inteira. Daqueles com quem você quer sair pra falar sobre besteiras, sentado num balanço do departamento de Física, fazendo barulho com o canudinho do refrigerante.
     
Mas eles não estão aqui. 
     
A gente se fala todos os dias, mas quando eles choram, não dá pra abraçar um computador e esperar que ela fique bem. E dar tapas no mouse não é efetivo como forma de expressar nossa indignação quando fazem besteira. Damos risadas, mas às vezes gostaria de escutar como elas soam juntas, sem o som metalizado de um fone de ouvido. Videoconferências não bastam quando ganhamos um brinquedo novo, ou estamos chorando copiosamente. 
     
Nosso calor, tão mais quente quanto o humano, é apenas virtual.
      
Quem sabe quando poderemos nos encontrar?…
    
… 
    
Hoje, mais tarde. Amanhã. Semana que vem. Ano que vem.
    
Nunca? 
   
    
    
O nunca nunca mudaria.
      
Na falta do calor dos seus abraços, o calor de seu amor e sua amizade aquece meu coração.
       
Posso me virar enquanto nos vemos só nos sonhos.

Peggy, Maggie, Margareth.


Margareth. 
     
Margareth era Margareth.
     
Tinha nome, mas não o queria por completo. Tinha jeito de quem esconde alguma coisa, mas até esse jeito ela escondia dos outros. Mesmo depois de tantos anos, eu ainda sentia que faltava muito para conhecê-la realmente. Uma metamorfose ambulante de verdade. Raul a adoraria.
     
Vamos chamá-la aqui de Peggy. Que é como ela realmente gosta.
    
Peggy.
    
Pois bem, Peggy era Peggy.
     
Nossa amizade era difícil. Bonita, mas difícil. Unida, consolidada, mas ainda assim. Éramos diferentes demais. Muitas vezes, muito parecidas. E, mesmo dessa forma, bagunçada e incerta de sermos próximas, seguíamos nos aproximando ainda mais. Após tantos anos, ela foi o mais próximo que eu havia chegado daquela amizade idealizada de infância.
     
Foi a irmã seis meses mais velha que eu jamais teria. Foram mais broncas que recebi do que palavras amigas, em várias ocasiões – mas isso só comprovava nossa força. Sonhávamos e desejávamos coisas parecidas. Vez ou outra, as mesmas. Ou ainda, os opostos completos. Sempre seria engraçado argumentar sobre o que era melhor, ou falar de memórias nostálgicas das diversões que compartilhamos em anos passados.
     
“Peggy”, eu costumava dizer, “Vamos nos casar juntas.”. “Não, não vamos”, ela respondia. “Vou me casar muito tarde pra isso”.
     
Era sempre assim, meu coração partido, porém otimista, e seu coração partido, porém realista.
      
Houve também aquele dia, em que eu chorei. E todos aqueles outros também. Peggy tinha medo da vida real em tantos momentos, mas nos mais reais ela se abria e deixava minha tristeza entrar, pra que me deixasse em paz por um momentinho. Devolvia pra mim uma infelicidade menor. Nunca soube certamente se ela diminuía devido ao seu coração bondoso, ou se apenas roubava alguns pedaços para si.
      
Imaginávamo-nos idosas, sentadas em cadeiras de balanço, falando da vida e das coisas que conquistamos, escutando músicas antiquíssimas que nos fariam lembrar a juventude. Rugas profundas nas expressões, bochechas flácidas por tanto rir, dedos calejados por tanto digitar nossas risadas e nossa vida entre as linhas de um conto ou poema.
      
A Literatura nos salvaria das dificuldades. E nós salvaríamos uma a outra da solidão.
[Feliz Aniversário, Peggy ❤ Digo, Paula <33]

Eu não tenho amigos.

– Eu não tenho amigos.
Felicia bufou, sentada em sua cama, encarando o guarda-roupa. Uma voz surgiu da porta.
– Ah, vira homem, menina. Claro que você tem amigos. Tem a mim!
– Katarzyna, você é uma voz do meu inconsciente que representa minha subjetividade e meu ódio de mim mesma. Além de não ser minha amiga por não ser real, você não possui uma opinião válida. Por favor, retorne ao meu córtex cerebral e me deixe em paz essa noite. – Felicia suspirou e deixou-se cair deitada sobre o travesseiro. Sua imaginação fez com que a voz se movesse em sua direção e parasse ao seu lado.
– Você tem amigos sim, sua resmungona.
– Se eu for realmente tão chata quanto você é, deveria ser fácil deduzir que seria impossível pra qualquer pessoa me aturar.
– Você tem a sua família.
– Família não conta.
– Jesus.
– Além dEle.
– Mas aí você está querendo demais, né?
– Suma, Katarzyna – Cobriu os olhos com as mãos.
– Você se prende demais a umas idealizações tão ridículas, Felicia. E acho que é por isso que você está sempre tão infeliz, reclamando de tudo.
Nenhuma resposta.
– Nada a declarar? Ótimo, vou continuar falando. “Quais idealizações?”, você poderia pensar. Bem, um bom exemplo seria essa mania de acreditar que amigos são aqueles que você vê todos os dias, quase moram na sua casa, se envolvem em altas confusões ao seu lado o tempo todo, te entendem completamente e, ainda por cima, completam suas frases. Por tal coisa, eu culpo a sessão da tarde.
Um grunhido.
– Amigos não são isso, sabe. Não apenas. Cada pessoa tem suas dificuldades na vida e todo mundo vem e vai, nem todos ficam sempre ao nosso lado. Mas existe um sentimento que permanece, que causa aquela sensação nostálgica e prazerosa de reencontrar uma pessoa querida depois de muito tempo e muita distância. Não precisa sentir no ar, a quatro mil quilômetros de distância, que você está mal, e pegar o telefone no exato momento. A confiança ao se abrir e a sinceridade ao escutar e falar são as coisas que realmente importam.
– Mas eles saíram sem me convidar. Nem a Peggy me ligou.
– E agora, por causa disso, você vai parar de falar com ela? Deixa desses tipos de drama, Felicia, pelo amor de Deus, que você já está velha demais pra isso. Você sabe muito bem que não iria, nem que eles te convidassem. E antes que você diga qualquer outra coisa – Felicia permanecia em silêncio, mas seu olhar rodeava pelo quarto – não, eles não deveriam te convidar por educação. Não depois de sete anos de convivência, né.
Silêncio.
Mais silêncio.
– Talvez você esteja certa, Katarzyna.
– Bem, na verdade eu apenas repeti tudo que sua mãe te disse hoje mais cedo. Mas como Vossa Senhoria nunca dá razão a ninguém além de si própria…
– Mentira.
– Desculpa clássica que apenas confirma minhas palavras.
– Vá incomodar outra cabeça, vá.
– Ah, cale-se. E vamos, desfaça esse bico que você fica feia pra caramba assim, e vá ligar pra Peggy.
A porta de seu quarto se abriu e sua mãe entrou.
– Conversando sozinha, Felicia?
– Mais ou menos, mãe, mais ou menos. O jantar já está pronto?
– Não, filha, ainda não. É que tem alguém te esperando no telefone.
– Quem?
– Peggy.
[Pros meus amigos queridos que sempre aturaram (e aturam!) minhas crises de carência ]