Eu sou difícil de amar.

     Ou, pelo menos, foi nisso que me fizeram acreditar a vida toda. Eu não era suficiente pra que ninguém se esforçasse. Chata demais, espinhosa demais, especial de menos, bonita de menos. Desde criança, consciente ou inconscientemente, a mensagem que as pessoas que passaram pela minha vida foi uma só – você é difícil de amar.
    
     Ninguém queria se esforçar pra entender meu jeito de falar, ou de pensar, de me vestir, de me comportar, apesar de eu ansiar tanto por um pouco de compreensão, alguém que sinalizasse que eu não estava sozinha dentro da minha cabeça no mundo. Nem meus pais escaparam dessa. Não os culpo, porque eu sei que, de alguma forma, eles achavam que me fariam bem, apontando as dificuldades de relacionamento que havia entre eu e o mundo. Mas algo se perdeu nessas boas intenções também.
    
     Não é surpreendente que, no meio de toda essa bagunça, mesmo tendo crescido na igreja, eu tenha passado meus 22 anos de vida sofrendo com um sentimento de que nem Deus seria capaz de me amar. Mesmo conhecendo e experimentando de todo o maravilhoso cuidado do Pai comigo ao longo de toda a vida, e a insondável profundidade do seu Ser, essa barreira não se fechava. Não se fechou, aliás. Não completamente. Eu vivo em altos e baixos dessa jornada de contemplar minha própria imperfeição nas superfícies reflexivas da vida, e não saber olhar pros céus depois disso. Algo sempre morre um pouquinho.
    
     Eu já falei milhares de vezes aqui sobre o perigo de colocar sua esperança no amor dos outros, mas acho que esse é um erro que todos vamos acabar cometendo, em algum momento, antes de acertarmos o alvo das nossas expectativas. Até porque o ser humano foi essencialmente criado para relacionamento, para amar e ser amado, e, em primeiro momento, é muito mais fácil se apoiar naquilo que está bem diante dos olhos. Aliás, eu diria que a vida é toda sobre o que amamos ou deixamos de amar entre o espaço e o tempo. Um movimento constante de aprender e desaprender, mas tudo sempre gira em torno disso. Não à toa, do nosso coração procedem as fontes da vida.
    
     Eu posso descrever com exatidão a forma como meu coração se aperta toda vez que eu experimento algum tipo de rejeição, mas existe também uma forma muito específica como meus ombros se relaxam quando eu me enxergo nos olhos de Jesus, o verdadeiro espelho pra mim. Saber que você é feitura divina é uma verdade que demora a descer da cabeça pro coração. Saber que você não nasceu pra agradar a todos, que sua individualidade é linda, são tantos clichês que, de tão repetidos, parecem nem fazer sentido mais. Parecem até mentira.
    
     Muitas pessoas foram responsáveis por me privar de viver a verdade do Amor genuíno que o Pai derramou sobre mim. E, pro meu total desespero, eu já fui responsável por privar outros de acreditar que eles eram dignos de amor e atenção. Essa contradição ambulante entre o que eu vivi e o que eu queria viver e o que eu já fiz e o que eu queria fazer gerou um sentimento profundo de empatia dentro de mim. Como olhar pra outra pessoa e não enxergar nela os mesmos cacos que me tornaram o vaso quebrado que eu sou? Enquanto Ele não volta, continuamos sendo refeitos, sujeitos a quebrar de novo, e de novo, e eu preciso amar todos os vasos em pedaços que existem por aí, tanto quanto eu gostaria que amassem os meus caquinhos.
    
     Sempre parece uma idiotice colocar dessa forma, em palavras tão simples, porque amor, misericórdia e compaixão na prática são a maior batalha que nós enfrentamos. Principalmente quando a pessoa a ser amada é exatamente aquela que nos magoou. Acho que é esse o ponto em que tudo converge e se encontra. O mais profundo do nosso Amor é testado no perdão, e na capacidade de se enxergar no lugar de quem não foi capaz de fazer isso por você.
    
     Por coincidência (ou não), amar àqueles que nos fazem mal, àqueles que nos matam, que nos pregariam numa Cruz se pudessem, foi exatamente aquilo que o Ponto de Convergência de toda a dispensação dos tempos fez. AquEle que se entregou por Amor, obediente até a morte. Aliás, aprender a Amar é poder contemplar o pior e ainda assim enxergar o melhor. Quem de nós é capaz de fazer isso? Assim como em Cristo, um pouco de nós sempre morre nesse processo. Eu prefiro pensar que aquilo que me torna difícil de ser amada aos olhos dos homens some um pouquinho quando o caráter dEle aparece em mim.
    
     Todo esse fluxo de ideias confusas é só um reflexo de sentimentos confusos, que, somados e subtraídos, são só as consequências de um coração machucado tendo que se recuperar de novo. Eu nunca fui dessas que foge dos processos, mas amar, às vezes me dá vontade de voltar atrás. Poder viver minhas mágoas e cultivar rancor e amargura em paz, até que me consumam totalmente. Mas, acho que, no final, de tantas mortes diferentes, tudo que eu quero é encontrar Vida. A minha, a dEle, pra que nós possamos ser um, e eu consiga finalmente aceitar que, sim, meu Pai me ama, apesar de tudo aquilo que eu odeio sobre mim, e que os outros odeiam também. A realidade é dura, mas a verdade é bela. Existe esperança no meio do caos. Existe Amor. Tanto pra mim, quanto pra você.
    

31 Devocionais #8 – Mãos limpas, coração puro

     Em Salmos 24:3-4, o salmista canta que só tem acesso ao mais íntimo da presença de Deus aquele que tem mãos limpas e coração puro. Todos pecaram, e destituídos estão da glória de Deus, mas aquele que reconhece seu status de pecador e é lavado pelo sangue de Jesus, se tornando participante com Ele da Cruz e de Sua vitória, pode trilhar com segurança o caminho que leva até o mais íntimo do coração do Pai.
     Na lei Mosaica, havia alimentos considerados puros e impuros, e seu consumo era um dos reguladores daqueles que estariam limpos ou não para tomar parte nas cerimônias. Em Marcos 7:18-23, Jesus derruba este preceito, e explica que mais importa o que sai da boca do homem do que aquilo que entra. Desta forma, a verdadeira impureza deixa de ser meramente física – aquilo que mais precisa ser limpo é o nosso coração.
     Provérbios 4:23 já denunciava a importância do coração. “Dele procedem as fontes da vida”, ou seja, do seu coração procedem as fontes da sua vida. Os pensamentos, atitudes e ideias que desenham o desenrolar do seu destino vem do seu coração, tanto para o bem quanto para o mal – em Jeremias 17:9, ele é chamado enganoso. Mas, se aquilo que não nos alimenta pela boca não define nossa pureza, aquilo que nos alimenta com os olhos e ouvidos sim, pois são as portas de entrada para que nossa mente e nossa alma sejam cheias.
     Em 1 Coríntios 6:12, Paulo revela um detalhe chave para nossa conduta diária enquanto Filhos do Reino – todas as coisas nos são lícitas, mas nem todas convém, e nenhuma deve nos dominar, porque a vida vai muito além do que é pecado e do que não é. Nossa vida deve ser baseada em amar e agradar ao Senhor, sobre todas as coisas. Se você deseja que seu coração seja um domínio do Reino dos Céus, você deve alimentar seu coração das coisas do Reino, e, com sabedoria, remover da sua vida tudo que lhe seja pedra de tropeço. Nem todas as coisas que estão no mundo vão te tornar impuro, mas, caso alguma o faça, seu desejo de estar perto ao Senhor e ter livre acesso ao Pai deve ser maior que seu amor pela coisa mundana. 

Eu só sei amar em alto e bom som

     Eu me lembro que comecei a escrever compulsivamente aos 14 porque queria muito dar vazão às coisas que eu não conseguia dizer. Com o tempo, a necessidade de escrever apenas foi passando, e eu passei a querer que as pessoas lessem as ideias e sentimentos que eu colocava no papel (foi bem quando surgiu o Corvo Correio). O passo seguinte foi levar isso pras redes sociais, e garantir que o máximo possível de pessoas tivesse acesso. 
     
     Se desnudar em público, através da literatura, é um vício. Você se acostuma a compartilhar tudo que sente com gente indefinida, e elas sabem o que tá dentro de você, e quem sabe até sintam o mesmo. Tem quem diga que é perigoso e nocivo, e eu não deixo de concordar – se fosse pra gente se expôr em praça pública dessa forma, o coração não vinha guardado dentro do peito, com tanto osso, carne, sangue e pele cobrindo.
     
     Acontece é que, quando o coração entra em combustão, explode e sai voando por conta própria, não dá pra fingir que tá tudo bem, tudo normal.  Faz até mal, eu acho, não abrir uma janela pelo menos pra que a fumaça escape e não sufoque de dentro pra fora. Deixo meus parabéns aos que sabem amar em silêncio, acho que o mundo recompensa melhor vocês que aprendem a guardar para si. Eu só sei amar em alto e bom som.

   
   

Dia de Sono


     Hoje acordei cedo, contra a minha vontade. Havia muito a ser feito. Tantos desenhos, tantos trabalhos, tantos textos. Apressei-me em terminar o que de imediato era necessário, para que pudesse deitar-me novamente.
    
     Dormi sem nem perceber.
    
     Sonhei que, sentada em uma sala, pensava sobre a vida.
    
     Está chegando novamente aquela época do ano. Aquela época em que ele se encerra, pra que outro comece.
    
     Todo ano ocorre a mesma coisa. Dúzias de expectativas, centenas de ideias e planos. Doze meses se passam e nada muda. Minha vida continua basicamente a mesma coisa. Engano minha consciência com as mesmas meias verdades e descaradamente minto pro meu coração, dizendo que tudo ficará bem. Ah, vida curiosa essa. Vivemos em ciclos de doze meses. Acreditamos que neles está contida toda a magia da existência.
    
     2012 talvez esteja sendo, de longe, o melhor ano da minha vida (desde 1995). Amadureci a níveis que nunca julguei possíveis. Conheci mais pessoas que jamais havia conhecido dentro de um só ciclo. Algumas terríveis. A maioria incrível, por sorte.
    
     Apesar de tanta positividade, duvido que em um só ano meu coração tenha dado tantas voltas dentro do meu peito, ou tenha corrido tanto atrás do próprio rabo. O maior ensinamento do ano? Pro inferno com a superficialidade e as aparências. Você mesma esconde tanto por trás da sua casca (um pouco mais gordinha que no ano anterior). Dezessete anos depois, finalmente entendeu o quão pouco ela representa.
    
     Fiz uma amiga imaginária também. Mais uma, na verdade.
    
     Estou noiva da Arquitetura. Caso-me em breve.
      
      (Nesse momento, a sala, até então vazia, começou a encher-se de sons. Aos poucos, tomava forma ao meu redor um jantar de Natal de filme estadunidense. Várias pessoas passavam por mim. Algumas me atravessavam. Um senhor de barba branca foi o único a me notar, e a perguntar se eu tinha fome. Disse que sim. Ele sumiu. Todo o resto sumiu também.).
    
     Continuei pensando.
    
     Passeei por lojas decoradas pro Natal enquanto mal havia terminado o primeiro período da faculdade. A maioria acharia isso um saco. Talvez um paradoxo sobre nossa existência atrasada. Eu sento e me agradeço pela greve.
    
     A greve foi bondosa em haver nos escolhido, em haver escolhido 2012. Meu 2012 não estaria sendo tão bom não fosse por ela.
      
      (O vazio da sala começou a tomar formas de uma construção quase medieval. Parecia uma taverna. Vários brasileiros vestidos como vikings passaram por mim. Um japonês magrelo e uma linda de olhos grandes vieram até mim e disseram que já havia passado da minha hora de dormir. Cochilei em sonho. Acordei na vida real).
    
     Sentei-me na cama e enrolei-me nas cobertas – apesar de não estar tão frio assim; estava com fome. Eram 18h. Estava dormindo desde as 11h30. Olhei ao meu redor, procurando os contornos da taverna, e qualquer rosto familiar. Apenas paredes brancas e os móveis do meu quarto. Não gosto de bebidas alcoólicas, mas naquele momento aceitaria qualquer coisa que viesse de lá. Sentia falta.
    
     Tentei pegar no sono mais uma vez, mas já não estava mais tão cansada. Escutei o barulho da televisão ligada na sala. Uma propaganda de Natal, com músicas típicas ao fundo.
    
     A época mais bonita do ano.
    
     Filosofei sobre as renas e até fingi que era um elfo. Convidei meus amigos imaginários a se sentarem comigo na cama. Contei pra eles sobre meu sonho. E sobre meu coração. Falei de todas as pessoas que haviam ido e voltado na minha vida. Abraçaram-me. Disse-lhes que estava encantada. Perguntaram-me o que havia me encantado. Tive medo de admitir para mim mesma, então não quis contar para eles. Mas eles sabiam. Eram parte de mim.
    
     Brincamos de cantar músicas de The Rocky Horror Picture Show, até que caíram no sono. Eu permanecia acordada. Ao fundo, a canção natalina continuava tocando.
    
     Foi quando percebi que ainda estava sonhando.
    
     Um sonho dentro de outro sonho.
    
     Fiquei presa lá por várias horas ainda.
    
     Teria ficado por ainda mais tempo. Porém, tinha um compromisso importante às 8h, no dia seguinte. Não podia perdê-lo.    
    
     Não podia perdê-lo.

O Banco.

Sentei-me pra ler um livro num banco.
     
Era um banco de madeira, comprido, e só eu me sentava nele. O tempo estava nublado, e a luz solar se espalhava de forma difusa através das nuvens pesadas. A brisa que soprava era leve e fresca, apenas o suficiente para que eu a sentisse na pele, e não movimentasse involuntariamente as páginas daquele livro que eu estava prestes a abrir.
     
O banco estava entre os pilotis de um bloco de salas de aula, na universidade. Aproximava-se a metade do turno da tarde – a maioria dos estudantes se amontoava nas filas enormes de lanchonetes. Torravam seu dinheiro em cremes de açaí e croissants de chocolate, para depois se sentarem nas mesinhas engorduradas, enquanto reclamavam dos projetos e dos professores. Estudantes de Arquitetura, principalmente.
     
Um garoto passou entre aquelas muitas mesas perguntando se alguém se interessaria em comprar brigadeiro. Ofereceu-me um, mas recusei de forma educada – prefiro ler com estômago vazio. Ele agradeceu e seguiu em frente, passando por uma garota que, aguardando sua vez na fila para comprar uma latinha de Coca Cola, arrebitava o bumbum e tomava fôlego para que os seios parecessem maiores. Garotos a observavam, e discutiam sobre ela. A vontade que sentia de acertá-la com o livro que tinha em mãos era enorme, porém fui capaz de me controlar. Além do que, ainda nem havia começado a lê-lo – sequer estava aberto. 
     
O relógio marcava 16h, e aos poucos o lugar foi se esvaziando. Restavam apenas as moças que trabalhavam na lanchonete, e um ou outro estudante atrasado (além dos vagabundos que, como eu, recusavam-se a ir para suas salas de aula). Duas garotas, com camisetas do curso de Design, sentaram-se no banco ao lado do meu. Desejei expulsá-las a pontapés, mas acabei me dando conta de que fofocavam sobre uma festa que havia ocorrido no fim de semana passado – na qual havia pessoas que eu conhecia. Me interessei nas possibilidades e me concentrei no que falavam.
     
Lá pelas 17h30 elas se cansaram de falar, e resolveram sair dali. Após tantas informações novas – apesar de muito irrelevantes – resolvi me levantar e tomar um copo d’água. Quando voltei pra me sentar, havia uma pessoa sentada no meu banco. No meu banco. Eu até aceitaria dividi-lo, dependendo das circunstâncias, mas seu traseiro repousava exatamente no mesmo lugar no qual eu antes confortavelmente estava. E ele sabia disso. Ainda que tentasse disfarçar, era evidente que em tudo havia um propósito. 
     
Éramos íntimos o suficiente para que eu chegasse reclamando daquela usurpação. Uma pequena discussão seguiu-se por cerca de trinta minutos. Lutei pelo lugar que havia conquistado utilizando tantas piadas e criancices quanto pudesse. Quando finalmente desisti  e aceitei dividir o banco, ele costumeiramente se levantou. Disse tchau e se virou para ir embora, mas não sem, antes, voltar-se novamente para mim.
     
– Você é bem estranha, sabe.
      
Então seguiu seu caminho. Mamãe me ligou quase que imediatamente, avisando que estava me esperando no ponto de ônibus mais próximo. Guardei o livro na mochila e segui lentamente até onde estava o carro, ainda que já estivesse atrasada para a aula de alemão. 
     
     
Acabei não lendo o livro.

Coração de Papel.


“Você me entregou um coração de papel.
        
Era um pequeno origami, feito a partir de uma folha de caderno pintada a lápis de cor vermelho. Alguns vincos se destacavam nas suas superfícies, como se as dobraduras houvessem sido erroneamente feitas várias vezes, antes que a forma final fosse alcançada. Chegou num dia qualquer, pelo correio, em uma caixa amarela comum. Nenhum bilhete, nenhuma plaquinha, nem mesmo o nome seu escrito em grafite acinzentado em uma das faces mal coloridas. Mas eu sabia a quem pertencia. Sabia que era seu. Tinha aquele seu cheiro que eu nunca havia sentido.
        
Por muito tempo eu pensei que ele fosse uma piada, ou até mesmo alguma forma de me mandar uma mensagem subliminar. Talvez você não me amasse tanto assim, ou tivesse medo de entregar-se por completo. Talvez você houvesse produzido várias cópias desse coração, para distribui-lo entre as muitas pessoas inocentes que passassem pela sua vida, e não lhe conquistassem a cordialidade mais profunda. 
       
Era engraçado carrega-lo por aí. Enquanto usei-o pendurado na minha mochila, exibindo-o a todos, escutei as mais diversas teorias e opiniões. Você bem entende como eu não realmente sabia o que significava, pra você, o tal do coração de papel, mas era tudo que eu podia ter vindo da vossa pessoa. Protegia-o quando muito chovia, e a água ameaçava sua integridade, e o tomava nas mãos quando o espaço era muito apertado para que sua forma não se desmontasse. Guardava-o numa caixinha sobre minha mesa de estudos quando não estava fora. Gostava de mantê-lo sempre perto de mim. Mesmo que fosse tão frágil, de papel.
       
Só entendi que era real quando você o pediu de volta.
       
As circunstâncias já me indicavam que as coisas entre nós não eram mais as mesmas, mas nunca pensei que teria que lhe entregar aquele coração. Era tão feio, mal feito… Tão meu. Tão meu havia se tornado, que quase amava mais àquele amontoado de dobraduras do que a ti. Não sei se você ainda se lembra, mas quando foi à minha casa, coloquei-o em suas mãos dentro da caixinha de vidro. Tinha medo que você o estragasse.
      
Mal sabia eu que eu o estragava, a cada dia.
       
Toda a sua fragilidade, sua simplicidade, sua delicadeza e suas peculiaridades se refletiam naquele papel mal colorido. Era parte de ti. Eu o isolei de sua fonte de vida, e não percebi que seu brilho se apagava, sua força morria, seu pulsar desaparecia. Sua essência morria. Ambos morriam.
       
Quando virou as costas para mim, lágrimas pesadas rolaram pelo meu rosto. Tanto tempo tentando cuidar de um coração de papel, que eu julgava ser uma piada tua. Que fosse ser pra sempre meu.
       
Sempre sentirei falta do coração.
             
        
Sempre sentirei sua falta.”

O Frio, a Chuva e eu.


Rain falls

Acordei mais cedo que queria. Meus olhos estavam pesados e meu corpo doía. Sentia que várias horas do meu sono me haviam sido roubadas. No entanto, bastou um suspiro fundo para perceber que, após tantos dias mergulhados em um calor infernal, chovia, e ventos frios sopravam.
     
Nem mesmo calcei sapatos. Levantei-me da forma que estava, pisando no chão frio, com meu pijama de dias quentes, e abri a janela da sala. Algumas gotas de água gelada pingaram no meu rosto, antes que eu fechasse o vidro e me apoiasse na parede. Fiquei observando a chuva caindo por bastante tempo. Vez ou outra bocejava, pois o sono insistia em me assombrar, e em alguns momentos eu parecia me desligar da realidade por poucos segundos, como se o cansaço me cobrasse a noite mal dormida a prestações. 
      
Apesar de tudo, não planejava ser vencida pelo esgotamento. Estava frio, e assim meu coração se aquecia.
      
Nunca fez muito sentido que, quando as temperaturas da cidade baixavam, meu ser acordasse e desabrochasse. No entanto, a sensação de ser abraçada pelo mundo independia de razão. Era como se a vida me tomasse nos braços e cuidasse das minhas feridas de guerra, usando a chuva para lavá-las do sangue e da terra. Era uma purificação.
      
Sentia como se pudesse finalmente chorar todas as lágrimas que o calor havia feito evaporar do meu coração. Estava angustiada, então as coloquei pra fora e era como se o peso do suor fosse retirado de mim. Minha postura, tão recurvada, foi se endireitando lentamente, até que eu consegui dar um sorriso mui sincero, como não havia conseguido sorrir nas últimas semanas.
      
Observei o cair da chuva por ainda algum tempo, refletindo sobre esse ciclo da minha existência que estava se reiniciando. De frio em frio, de chuva em chuva, seria sempre assim.
      
Voltei para a cama e deitei para dormir em paz, com o tintilar das gotas d’água na janela e no asfalto antes tão quente me embalando. O vento gelado que passava pelas frestas da janela do meu quarto fechou meus olhos.
[Não vá embora, frio ♥]

Discórdia

“(…) a Discórdia infatigável,
Companheira e irmã do homicida Ares,
Quem a princípio se apresenta timidamente, mas que logo
Anda pela terra enquanto a fronte toca o céu.” Homero – Ilíada

– Quem dera fosse eu um passarinho. – Ele disse baixinho, entre suspiros.
– Por quê? – Ela falava entre dentes, sem movimentar a cabeça ou focalizar o olhar vazio.
– Por que o quê?
– Por que você queria ser um passarinho.
– Ah, estava apenas pensando alto. Nada demais. Só uma reflexão boba. Não vale a pena falar sobre.
– Nós estamos sentados aqui há mais de quarenta minutos sem trocar mais do que cinco palavras. Por favor, diga algo sobre essa reflexão boba, antes que o silêncio comece a fazer mais barulho que a minha circulação sanguínea.
Ambos se endireitaram sobre o tapete não muito felpudo, apoiados na parede da sala.
– Ok, vou começar a falar agora. Bem, eu gostaria de ser um passarinho.
– Certo, Batman. E essa parte eu já entendi.
(Um olhar raivoso) Precisava mesmo dessa grosseria, Anna? Também não vou desenvolver meu pensamento mais.
(Um acre tom irônico) Desculpa-me, Hulk, não intendia deixar-te zangado – (Um doce olhar sarcástico) – Não obstante, não enxergo tal grosseria. Por qual razão Vossa Mercê gostaria de ser um passarinho?
– Mais uma gracinha, e eu me calo
– Mais uma frescura, e eu não te escuto.
– Você quem pediu que eu falasse sobre minha reflexão, desgraçada. Admita, você não queria me escutar, queria era me esculachar. Seu veneno não estava aguentando ficar tanto tempo fechado dentro dessa boca enorme, sua língua de cobra já clamava por liberdade.
– Se você ia ficar se machucando com qualquer coisinha que eu falasse, por que aceitou falar sobre essa sua maldita reflexão?
– Quer saber de uma coisa, dane-se aquela reflexão, tenho uma ideia nova. Queria ser um passarinho pra poder sair voando, ficar livre de você e de brinde poder defecar na sua cabeça.
– A porta está sempre destrancada para você, Homem Pássaro. E outra coisa, aquela pasta branca é ureia, ou seja, urina, não fezes. Além disso, você já deixa tantos resquícios de urina no vaso sanitário que, na cabeça ou no banheiro, já não me faz muita diferença, actu.
Alguns poucos minutos em silêncio.
– Você não se cansa de todas as nossas melhor intencionadas conversas terminarem desse jeito?
– Não, nem tanto. Sabe, acho que foram elas que me deram a certeza de que devia me casar com você.
– Talvez. – Ele escorregou levemente as costas e encarou, pensativo, o vazio.
Mais um pouco de silêncio.
– Acho que eu só gostaria de ser um passarinho se você também pudesse ser um.
– Mas eu não tenho vontade de ser um passarinho.
– Desgraçada.

Maresia

O teu perfume me cheira a maresia.

Cheiro de praia, de mata, de mar…
Perfume que, em ti, nunca senti,
Mas que me será para sempre uma memória;
O aroma, tão salgado e bucólico,
De não saber entender-te;
A lembrança inesgotável de talvez,
De quase;
Quase tão bom,
Quase o melhor de uma noite cansada,
Ou o pior de uma semana relocada.
Poderia ter sido bem mais que algumas palavras ideais.
Mas não foi, não foi; não foi nem será!…
Mal guardas o acre nome meu,
Nem o dizes entre sons adocicados;
Nossa distância é tanta quanto o mar…
Entre nós, o cheiro dessa água, tão gelada e salgada;
Essa água que vem e vai; maresia
Carrega o perfume teu.