Da minha consciência.

     De tempos em tempos, eu creio que precise renascer nas minhas percepções de mim mesma. Há algumas semanas, constatei, com horror, que a pessoa que eu vinha me tornando estava sendo sufocada, dentro da minha mente, pela pessoa que eu era – recusando-se a morrer, sozinha, como sempre temeu estar. Hoje, acordei em meio a um surto psicótico de um eu que eu cria haver matado há muito tempo já. Enquanto a chuva caía lá fora, insistente, há tantos dias, suas mãos me prendiam a garganta e o ar me faltava.
    
     Eu queria mentir para todos ao meu redor e dizer que tudo estava tão bem quanto deveria, mas eu sempre fui muito carente de atenções. Na minha busca por discrição e silêncio, calei um pedaço de mim que agora chora, quase morrendo, mas recusando-se a sair. Por 20 minutos, parecia uma grande sombra negra que encobria não só os céus de bronze, mas os céus de mim, e já não havia qualquer luz. Meu chão foi embora e a leveza que vinha sentindo há alguns dias não foi suficiente para me fazer gravitar. Caí em queda livre.
    
     Ainda não paramos. Nem eu, nem a chuva.
    

     

Eu não sei o que podemos fazer, Maria

     Eu também tô ferrada, Maria, eu também tô ferrada. Não tô sabendo pra onde eu vou, de onde eu vim, o que fazer. Eu tô desanimada, Maria, eu tô desanimada. Eu tô cansada. E eu tô precisando mudar, revolucionar minha vida. Mas eu não sei o que fazer, eu realmente não sei. Eu tô perdida, Maria, eu tô tão perdida quanto você. Pra onde a gente vai agora, Maria? Eu não tô enxergando o caminho.
     
     E eu tô apaixonada, Maria. Tô apaixonada, de otária que sou. Tô sem saber pra onde eu vou com isso. Eu não queria, Maria, eu juro que não queria. Mas daí foi maior que eu, mais forte que eu. Eu fico sem saber o que vai ser, é sempre tudo tão difícil pra mim. Pra nós, né. A gente se magoa tanto. Eu tô apaixonada, mas isso não me dá mais vontade de viver, não tanta quanto eu preciso, e queria. Eu queria fazer alguém feliz, Maria, é por isso que eu amo. Mas até os meus amados amigos estão infelizes e eu tô deixando, Maria. Você tá infeliz, e eu não consigo fazer nada. Eu não mereço nada bom, Maria.
     
     Mas eu queria merecer, sabe, Maria. Eu queria. Mas eu não sei o que eu devo fazer. Eu não sei o que você deve fazer. Eu não sei de nada, Maria. Eu só finjo que sei, e as pessoas compram a ideia. Isso é ridículo, Maria, é ridículo que eu ainda precise fingir. É só comigo que as coisas são assim, ou é com todo mundo? Por favor, diz que é com todo mundo, Maria, e me diz que todo mundo no mundo é igual. Todo mundo no mundo carrega uma cruz. Maior ou menor, sempre é a mesma cruz. As mesmas dores, as mesmas dúvidas, os mesmos problemas. Eu tenho todos esses problemas que todo mundo tem, Maria, e eu não sei o que fazer com isso. Eu não sei mesmo, Maria. Eu não sei.

Ninguém me conhece de verdade.

     Meu coração é tomado pela angústia sempre que não consigo me expressar completamente. Desconheço meios-termos e vivo entre razão e emoção extremos, extremos. Sinto tudo intensamente e sofro pelas menores coisas.

     
     Ninguém me conhece de verdade.
     
     A vida segue em frente e sempre me deixa pra trás. Preciso correr pra que consiga acompanha-la. Cada novo erro traz consigo o peso dos erros anteriores, e tudo cai sobre meus ombros como um grande caminhão de batatas que se abre sobre mim. 
          
     Ninguém me conhece de verdade.
     
     Contra todas as expectativas minhas, de meus pais e de profissionais, eu tenho amigos. Sem esforço, sem dramas. E, mesmo assim, a solidão está sempre à espreita, enganando meu coração e convencendo-me de que estarei sozinha para sempre.
     
     Ninguém me conhece de verdade.
     
     É difícil fazer-se entendida quando tudo parece vazio, tudo parece distração, tudo parece vaidade, e as pessoas não se importem o bastante para que lhe escutem, reclamando às repetidas, e lhe respondam às repetidas. Metalinguagens e inversões sintáticas não escondem a corrente que lhe prende em um ciclo de mesmos erros que lhe aprisionam a alma.
     
     Ninguém me conhece de verdade.
     
     Quem poderia me conhecer por baixo de todas as máscaras? Pessoa alguma poderia ousar dizer que nos conhece sob o suor de nosso rosto. As camadas da existência estão sempre sobrepostas e deformadas, como se a vida não passasse de uma obra cubista. Tomo minhas licenças poéticas porque elas também são máscaras para mim.
     
     Ninguém te conhece de verdade.
     Minha Vida é meu clichê particular. Todas as cenas de um musical trágico. Uma vida que anseia ser escrita, que se manifesta como urgência literária constante. Há sempre algo a ser escrito, a ser dito. Não devo estar dizendo alguma coisa. Devo estar dizendo demais e carecendo hoje de novas explicações as má-explicações do dia anterior. 
     
     E, por mais que eu escreva todas essas vezes em que a obsessão e o desespero batam, e os dedos 
comecem a tecer no ar aquilo que eu tenha a dizer, ninguém me conhecerá de verdade.
     
     Ninguém me conhece de verdade, mas eu me exponho como se fosse uma ostra sem pérola, em busca de alcançar algum valor perante uma sociedade ostraica que quebraria minha concha. E quebra, todos os dias. Não a concha que me liberta, mas a que me protege e que permite que, agarrada à um fio de sanidade, eu consiga dormir à noite.

[só]

No fundo, todo mundo é igualmente solitário. Quando a noite cai, quando os outros morrem, resta um ser, e só. Só o Ser. Só umas lembranças do que as outras pessoas já foram. Só um borrão do que existe à luz do Sol e da Lua. Só aquelas estrelas meio psicodélicas que aparecem pra nós quando fechamos nossos olhos.
     
Dá pra contar com a companhia dos amigos ou de uma música. Da família, ou de um animal irracional. Mas acompanhar não vinga. Dois em um não vinga. Viajar. Grandes grupos. Cidade, estado, país, continente. Nada disso floresce, ou espera pra que veja a Vida passar. Valorizamos tanto a individualidade, o individualismo, o único ser. Qual o sentido em ser, se a morte está à espreita e quase nada do que fomos resta depois que deixamos a superfície, e vamos ser esquecidos no subsolo?  No fundo, todo mundo é igualmente desnecessário.
     
Nunca tive razões pra sofrer pela solidão em um Dia dos Namorados. Mas sempre tive razões pra sofrer pela solidão de todos os outros dias. De todos os anos que vivi até agora. De todo esse buraco que me consome, ainda que eu agora tenha gentes com quem dividir as frustrações. Mesmo assim. Quando a noite cai, conforme os outros morram, restarei eu, só. Só eu. Só umas lembranças do que as pessoas ao meu redor são, e já foram. Só um borrão de memória das coisas que eu vejo enquanto há luz. Só aquelas estrelas meio psicodélicas que aparecem quando fechamos os olhos, e encaramos o mais íntimo do vazio da nossa solidão.
   
      

"30 de 18", ou "Por que estou decepcionada comigo mesma"

     Na próxima segunda-feira, dia 1 de Abril de 2013, completam-se 30 dias desde que eu fiz 18 anos. Essa idade mítica, que nos retira bruscamente da infância e nos joga oficialmente pra fase adulta, pertence a mim há um mês comercial. A maioria aguarda ansiosamente pela data; eu oscilei ao longo dos últimos meses. Sinto uma imensa falta de ser criança.

     Como era adiantada no colégio, vivia sob a pressão de “amigos” tratando-me negativamente por “ser criança”, e cobrando de mim comportamentos que não pertenciam a minha idade (e nem à deles). Minha necessidade de estar sempre de acordo com todas as opiniões que as pessoas emitiam acerca do que eu era vs. o que eu devia ser fez com que eu estivesse sempre tentando me adequar à qualquer coisa que parecesse mais legal do que aquilo que eu era. Ironicamente, as pessoas sempre me rejeitaram, mais do que gostaram de mim.

     Aos 2 anos, eu já sabia ler e escrever; escrevia pequenas histórias sobre princesas que salvavam seus príncipes, e as ilustrava com garotinhas de vestido cor de rosa. Meu pai trabalhava com moda, e eu possuía minha própria grife imaginária. Comecei a ler sobre Matemática e Lógica aos sete anos; estudei a Relatividade Especial, pela primeira vez, aos dez. Escutei, desde pequena, que eu poderia ser qualquer coisa que eu quisesse. Que meu futuro seria brilhante; antes dos 18, eu teria alcançado coisas que muitos adultos jamais sonhariam em alcançar. Eu era uma criança prodígio, como diziam. Poderia falar cerca de 5 línguas, poderia ter adiantado mais anos no colégio, poderia ter publicado livros…

     Bem, aqui estou eu, aos 18. Nada disso ocorreu.

     Entrei na universidade aos 16, mas, isso, por si só, não é grande coisa. Permiti que o mundo ao meu redor me freasse, me dissesse que crianças não devem se importar com as coisas que eu amava; permiti-me acreditar que estava numa idade em que nada realmente acontecia, e que a chave era ir em busca da futilidade adolescente das revistas. A culpa não era bem dos outros – cada um exprimia as ideias e valores que lhe eram convenientes. O erro foi meu, ao aceitar, na minha vida, esse desespero por aceitação.

     Desde que me comprometi, em 2011, a postar, neste blog, os textos que escrevia, sempre senti uma vontade muito grande de poder falar sobre minhas frustrações; demorei a fazê-lo por medo da opinião dos outros. Essa vida online que levamos é extremamente medíocre; essa mania de criticar tudo aquilo que o outro faz, apenas pela diversão de vê-los mal, é algo que eu nunca entenderei. Neste momento, publicando este desabafo, estou ciente de que serei julgada, da mesma forma que fui na infância, quando mudei de colégio, e quando entrei na faculdade. Mas a verdade é que ninguém tem nada a ver com isso. Não devemos nos tornar arrogantes e estúpidos apenas pela autenticidade – a boa convivência deve ser priorizada –, mas não faz sentido preocupar-se tanto com o que todos dizem. Às vezes nossos amigos mais próximos nem sempre sabem lidar com nossas ações, por conta dos próprios (pré)conceitos que carregam.

     Hoje, quando me encaro no espelho, vejo apenas coisas que me chateiam – física, emocional e intelectualmente. Mas, talvez, o pior de tudo, seja que eu insista em querer adequar-me à ideia que os outros fazem do que eu deveria ser; mais magra, mais estável, menos frustrada, de cabelo mais comprido, usando roupas diferentes, lendo livros diferentes, falando sobre assuntos que interessam aos outros, e não a mim. De certa forma, é isso que mais me frustra. Entre tudo de bom que já aprendi com as outras pessoas, foram tantas coisas ruins que eu aceitei. A escolha sempre é nossa; a escolha sempre foi minha.  

     Mas não é isso que importa agora. Importa agora que eu queria poder voltar à minha infância, à infância de verdade; não para brincar mais, ou pela alegria de não precisar passar noites em claro projetando, mas para fazer o que eu realmente desejava, o que realmente pulsava no meu coração. As potências não duraram para sempre, como eu sempre pensei que durariam.

     Porém, de nada adianta choramingar agora, já que o tempo não volta, e tudo aquilo que eu poderia ter feito/sido/aprendido antes, será. Convém que eu passe adiante o que a vida me ensinou. Por mais que eu deseje poder voltar, não voltarei; só seguirei em frente agora. Minhas avós morrerão, meus tios e tias morrerão, meus pais morrerão também; um dia, eu também vou morrer. E eu espero muito não ter que, ao 40, aos 60, e aos 80, não sentir a mesma decepção que sinto neste momento.

     Eu espero que eu consiga vencer essa força do Tempo que me faz querer, cada vez menos, mudar alguma coisa nesse mundo.

  (E, aos amigos que certamente pensam em chamar-me, em privado, para censurar meu comportamento por pensarem que me expus demais/fui muito pedante/fui muito orgulhosa/sou muito bobinha: hoje, não).

Primeiro de Janeiro


     Existe uma sensação generalizada de depressão/animação – que chamarei de “Síndrome do Primeiro de Janeiro” –, carregada de falsos moralismos e vontades impossíveis, que costuma aparecer justamente no tal dia que a nomeia. Após uma noite consideravelmente divertida, alguma (ou muita) bagunça, e fogos de artifício, retornamos pra casa ao amanhecer, na esperança de dormir e magicamente acordar com uma vida totalmente nova.
     
     Meus Primeiros de Janeiro costumam ser psicologicamente deprimentes. Contra minha própria vontade (posso provar isso), começa a lotar minha mente de pensamentos aleatórios. Talvez fosse uma forma de evitar que considerasse demais sobre os erros que cometi. Nunca adiantou. Aumenta minha consciência de que o tempo está realmente passando. Já não sou mais criança. Estou morrendo.
     
     Em seis dias estou de volta à universidade. Passarei cinco desses dias cuidando de trabalhos. Além disso, ganhei peso nos últimos meses. E sinto que minha avó materna pode não passar desse ano. Farei 18 – e isso me deixa igualmente ansiosa e preocupada. A vida real, que desde 2011 vem me dando alguns tapas na cara, deixa bem claro que, a partir de agora, começará a me dar pontapés. 
     
     Apaixonada por números como sou, sempre fico deprimida ao saber que a contagem dos meses jamais ultrapassará o doze. Desse ponto de vista, sinto que, a cada novo ano, voltamos à estaca um. Uma progressão infinita. Assusta, um pouco. Sempre me assustou. Tenho medo de coisas sem fim. Daí começo a questionar os motivos de eu, finita, continuar vivendo nesta linha de tempo sem fim. Se, num minuto, me sinto no lugar certo, no seguinte já sinto que está tudo errado nessa vida. Coisa de adolescente mesmo. 
     
     Já chegou o momento em que nada mais faz sentido. Esqueci-me do dia da semana em que estou. Principalmente nesse calor. É aquele limbo do quase sono. Tiro minha primeira soneca do ano. Tenho odiado dormir ultimamente. Acordo como houvesse passado toda uma noite lutando. Lutando contra o quê? Não tenho inimigos. Só minha própria consciência. Inimiga o suficiente.
     
     Li tantos livros essa semana, quero mais. Pra ver se descanso minha mente de tantos pensamentos confusos. Tenho pensado muito sobre coisas que jamais ocorrerão, nesse e em qualquer outro ano. Pensava que, a essa altura, já estaria melhor. Seria melhor. Mas isso me faz pensar no passado. Não quero. Porém, ainda me sinto patética. Engraçado, achei que já estaria dormindo. Não estava no limbo? Acho que o próprio calor me acordou.
     
     Ano Novo, e não choveu. Ainda estou pensando no que isso pode significar.
     
     Aqui vamos nós de novo. Página 1 de 365. Lembro-me de 2012 como se fosse ontem. Não janto desde o ano passado. Não vejo meus amigos desde o ano passado. 2013, surpreenda-me. Feliz Ano Novo. Feliz Hoje. Feliz. Feliz.
     
     I’m just skin and bones.

Coração de Papel.


“Você me entregou um coração de papel.
        
Era um pequeno origami, feito a partir de uma folha de caderno pintada a lápis de cor vermelho. Alguns vincos se destacavam nas suas superfícies, como se as dobraduras houvessem sido erroneamente feitas várias vezes, antes que a forma final fosse alcançada. Chegou num dia qualquer, pelo correio, em uma caixa amarela comum. Nenhum bilhete, nenhuma plaquinha, nem mesmo o nome seu escrito em grafite acinzentado em uma das faces mal coloridas. Mas eu sabia a quem pertencia. Sabia que era seu. Tinha aquele seu cheiro que eu nunca havia sentido.
        
Por muito tempo eu pensei que ele fosse uma piada, ou até mesmo alguma forma de me mandar uma mensagem subliminar. Talvez você não me amasse tanto assim, ou tivesse medo de entregar-se por completo. Talvez você houvesse produzido várias cópias desse coração, para distribui-lo entre as muitas pessoas inocentes que passassem pela sua vida, e não lhe conquistassem a cordialidade mais profunda. 
       
Era engraçado carrega-lo por aí. Enquanto usei-o pendurado na minha mochila, exibindo-o a todos, escutei as mais diversas teorias e opiniões. Você bem entende como eu não realmente sabia o que significava, pra você, o tal do coração de papel, mas era tudo que eu podia ter vindo da vossa pessoa. Protegia-o quando muito chovia, e a água ameaçava sua integridade, e o tomava nas mãos quando o espaço era muito apertado para que sua forma não se desmontasse. Guardava-o numa caixinha sobre minha mesa de estudos quando não estava fora. Gostava de mantê-lo sempre perto de mim. Mesmo que fosse tão frágil, de papel.
       
Só entendi que era real quando você o pediu de volta.
       
As circunstâncias já me indicavam que as coisas entre nós não eram mais as mesmas, mas nunca pensei que teria que lhe entregar aquele coração. Era tão feio, mal feito… Tão meu. Tão meu havia se tornado, que quase amava mais àquele amontoado de dobraduras do que a ti. Não sei se você ainda se lembra, mas quando foi à minha casa, coloquei-o em suas mãos dentro da caixinha de vidro. Tinha medo que você o estragasse.
      
Mal sabia eu que eu o estragava, a cada dia.
       
Toda a sua fragilidade, sua simplicidade, sua delicadeza e suas peculiaridades se refletiam naquele papel mal colorido. Era parte de ti. Eu o isolei de sua fonte de vida, e não percebi que seu brilho se apagava, sua força morria, seu pulsar desaparecia. Sua essência morria. Ambos morriam.
       
Quando virou as costas para mim, lágrimas pesadas rolaram pelo meu rosto. Tanto tempo tentando cuidar de um coração de papel, que eu julgava ser uma piada tua. Que fosse ser pra sempre meu.
       
Sempre sentirei falta do coração.
             
        
Sempre sentirei sua falta.”

Heterônimo

Três e meia da manhã. Ainda estava acordada.

Decidir começar aquele livro havia sido, de longe, minha ideia mais cansativa. Seis meses e trezentas páginas depois, ainda me sentia em um beco sem saída e percebia que, aos poucos, a bomba do branco acabaria explodindo em minhas mãos.
A essa altura, estava presa num mesmo capítulo. O 14º, dos 17 que pretendia escrever. E realmente não sabia como encerrá-lo. Perecia nessa dúvida havia oito noites. Minhas olheiras chegavam ao nariz, e eu poderia jurar que durante a madrugada ouvia gritos vindos da minha cafeteira, tão sobrecarregada e maltratada.
Cansada do processo, cansada. Cansada da minha família. Cansada dos meus amigos. Cansada daquele maldito livro. Cansada do computador. Desliguei tudo – nada havia a ser salvo, já que nada vinha sendo escrito. Afoguei meu rosto na água gelada que saía da torneira. Sentia uma ressaca literária das piores.
Vestindo um pijama e, calçando um par de sapatilhas, com um casaco e chaves de casa presas no sutiã, saí de casa. Em plena madrugada. Sozinha. Talvez minha mãe acordasse e entrasse em desespero. Talvez fosse melhor voltar e pegar meu carro. Mas quem se importaria com detalhes quando sua mente trabalha tão lentamente – já havia caminhado mais de onze quarteirões quando consegui alcançar esse raciocínio.
Depois de muito, muito andar, acabei sentada num banco de praça. Praça muito feia, por sinal. Mal cuidada, de dar vergonha. Dei uma risada interna. Não havia qualquer espelho, mas com certeza meus cabelos se pareciam com aquela grama que havia crescido demais e padecia bagunçada e embaraçada. Observei um cão desolado passando, enquanto eu me fazia perguntas inúteis. Ele, por sua vez, devia se perguntar o motivo de um cão ser obrigado a viver desabrigado, em uma noite fria como aquela, sem qualquer comida, mas não tenho certeza. Se eu soubesse ler mentes, creio que não seria muito mais feliz.
Pode ser incrível como podemos alcançar o fundo do poço usando diferentes caminhos. Eu com certeza não imaginava a miséria psicológica que me aguardava quando, feliz, decidi que amava metalinguagem. Uma decisão altamente normal, se não comum. Isso, claro, em situações que envolvem pessoas lúcidas, equilibradas e emocionalmente estáveis, cheias de uma “força interior”. Desnecessário acrescentar que nada disso amo/sou.
Metalinguagem deveria vir com um aviso, “pensar duas vezes antes de utilizar em autobiografia não declarada”. Porque foi esse o meu erro.
Modificar alguns nomes, personalidades e situações não tornava aquela história que escrevia menos minha. E, talvez, a grande questão de todas essas noites mal dormidas não seja “o que fazer dessa história?”, mas “o que fazer da minha vida?”. Vinte anos mal vividos, à sombra da covardia. Amando qualquer coisa que porventura me olhasse duas vezes. Reclamando de tudo aquilo que pudesse movimentar minha existência a um sentido mais verdadeiro. De alguma forma, eu acreditei que escrever sobre isso esclareceria o meu destino. Só que não.
Cansei de escrever sobre ser infeliz e procurar uma felicidade de papel maché.
Sempre acreditei que estava apenas pairando sobre o abismo, na segurança de uma nuvem permanentemente tempestiva que nunca choveria pra qualquer lugar. Mas foi apenas uma crença ingênua. O escuro do abismo já me iludia os olhos havia mais tempo que eu era capaz de conceber. E a chuva já me havia enchido e afogado, entre essas quatro paredes da alienação de mim mesma.
Coloquei as mãos nos bolsos do casaco. Minha cabeça doía, e minha garganta apertava a ânsia de chorar. Olhei para os lados, e não havia uma alma, sequer uma perigosa, pra me fazer companhia. Escutei ao longe a torre da igreja badalar seis da manhã. O frio não cessava, e fazia com que eu esboçasse caretas a cada rajada de vento que atravessava aquela praça. Suspirei. Sempre gostei de suspirar.
Panfletos baratos de lojas de esquina se acumulavam próximos aos meus pés. Fiz algum esforço para alcançar um, enquanto tentavam dançar ao sabor de uma brisa. No verso de seu papel sulfite verde, um vazio. Todo um vazio. Esperando para ser preenchido pelas palavras de um poeta ou contista idealista, ou pelos esboços de um ilustrador de cartazes desempregado. Talvez os rabiscos de um matemático professor mal remunerado, que sonhava ser laureado com um Nobel.
Tudo começava por um vazio.
Esvaziei minha mente. Ou pelo menos prefiro assim pensar, já que seria impossível, por um só segundo, cessar o movimento inconstante da minha cabeça ainda muito cansada e dolorida. Mesmo assim, parecia que nada poderia me tocar, naquele momento. Éramos eu e Deus apenas. Como se esvaziar-se fosse tal qual uma elevação espiritual.
Quando abri os olhos que não havia percebido fechar, uma senhora, muito simples, estava parada a alguns passos de distância. Carregava uma bolsa puída na alça, e tinha olhos gentilmente cansados. O Sol já brilhava intensamente, atravessando as árvores de copas irregulares e magrelas, parando sobre meu olhar. A luz fê-la perceber que eu também a observava, mesmo estando com a cabeça abaixada. Não se intimidou pela minha aparência estranha.
“Com licença, querida, você está perdida, ou fugida?”
Levantei a cabeça lentamente. Há três horas, ou três horas depois de ter saído de casa? Não saberia por onde começar a respondê-la, não fosse um insight que me surgiu, tão mais rápido do que me fugira uma ideia oito noites atrás.
“Encontrada”. Um ponto de interrogação passeou por seu rosto, antes de sorrir naturalmente e, após um leve aceno de cabeça, seguir seu caminho. Depois dela, vários outros passaram, falaram, viveram… Acabei cochilando lá pelas onze daquela manhã. Fui despertada às 18 horas, pela mesma senhora; repetiu-me a pergunta. Repeti-lhe a resposta.
Já anoitecia. Ofereceu-se para acompanhar-me até em casa. Recusei, mas depois me arrependi. Caminhei solitária por várias ruas de um caminho mal memorizado, até finalmente chegar ao meu lar. O carro de polícia parado do lado de fora me deu vislumbre do que teria que enfrentar quando entrasse, mas não importava. Não agora. Finalmente terminaria aquele livro. E em paz.

Maresia

O teu perfume me cheira a maresia.

Cheiro de praia, de mata, de mar…
Perfume que, em ti, nunca senti,
Mas que me será para sempre uma memória;
O aroma, tão salgado e bucólico,
De não saber entender-te;
A lembrança inesgotável de talvez,
De quase;
Quase tão bom,
Quase o melhor de uma noite cansada,
Ou o pior de uma semana relocada.
Poderia ter sido bem mais que algumas palavras ideais.
Mas não foi, não foi; não foi nem será!…
Mal guardas o acre nome meu,
Nem o dizes entre sons adocicados;
Nossa distância é tanta quanto o mar…
Entre nós, o cheiro dessa água, tão gelada e salgada;
Essa água que vem e vai; maresia
Carrega o perfume teu.

Insomnia

 

Já faz duas horas que eu estou aqui na cama, deitada, sem conseguir dormir, encarando o teto. Não, não é culpa de ninguém. É culpa minha mesmo. Os dias passam e a vida permanece igual; 24 horas por dia, sete dias por semana, a mesma babaquice, as mesmas reclamações, os mesmos atos estúpidos e o mesmo tempo desperdiçado. Rancor, mau amor, revolta, orgulho, e o mundo segue girando na mesma velocidade, sem se mover um pouco a mais ou a menos por causa do meu drama. Ficar sentada, parada, esperando o oceano criar uma onda fantástica que varrerá tudo aquilo que precisa ser destruído na minha vida é inútil. A ficção IMITA a realidade, e não o contrário. Um dia vai dar certo, mas não agora, e querer apressar as coisas é desnecessário: o ritmo delas não se altera. E no meio de tanta futilidade, ainda sobra tempo pra acusar O único que não tem culpa em nada disso. Sim, Senhor, fui eu que errei, mas cadê a força de vontade pra mudar? Suponho que foi embora na última vez em que eu virei as costas pra Ti.

Então eu tenho uma vida, um Deus, um monte de gente que amo, um monte de gente que não amo, e tanta coisa pra acontecer ainda. E eu me pergunto: quando eu vou começar a fazer mais que o mínimo para que o movimento da minha existência saia do movimento retrógrado? Claro, a mesma desculpa de sempre. “Você é tão jovem, tem tanto tempo ainda para fazer tantas coisas”. Engraçado, lembro-me de me falar essas mesmas palavras há sete anos e, então; desnecessário mencionar como nada se transformou de verdade. O fato é que cada segundo imóvel, desperdiçado com choros e lamentações é um minuto a menos do meu tempo de ação que se vai. Não que isso seja tão difícil de ser percebido, mas é que é muito difícil conseguir retirar as nádegas tão confortavelmente colocadas no sofá, principalmente quando o melhor programa do universo está passando na televisão.

Uma hora a menos.

Uma hora a menos que será repetida logo em seguida, se o próximo programa for tão bom como o anterior. A dúvida fica presa, então, e em parte presa na lerdeza emocional do sofredor em questão. É complicado entender a motivação verdadeira de toda essa necessidade de drama e enrolação que permeia não só a minha vida, mas muitas – mas vamos nos ater à desgraça da minha vida: se eu não estou fazendo nem por mim, quem dirá por outros.

Um dia, talvez, eu consiga me levantar desse sofá emocional e colocar minha vida em movimento. Deus, eu com certeza vou precisar de alguma ajuda, então neste momento de insônia e reflexões vazias e infrutíferas, eu gostaria que o Senhor atentasse para a minha voz e me fizesse mais forte. Talvez, talvez amanhã seja esse dia. Esse dia em que, acreditando em Ti e em mim, eu entenderei como a vida é simples e a complicação sou eu. Sou eu. Eu.

Eu.

Estou com sono agora.