Cesta de Frutas

English version.

Existem muitas formas de dimensionar o tempo. Além dos minutos e segundos, horas, dias, semanas, tem as manhãs, tardes e noites, e as estações, e os bimestres ou semestres escolares, e os quatro anos entre cada eleição, Olimpíada e Copa do Mundo. Quantas refeições em família, quantos cafés com amigos, quantas vezes pegamos o mesmo ônibus indo para o mesmo lugar, na mesma hora. Quantas vezes abrimos e fechamos a mesma porta da frente. Faz alguma diferença também o sentido da contagem — se os ciclos sempre reiniciam (como todo mês que nunca passa do dia 31), se acumulamos indefinidamente, se fazemos contagem regressiva, e o que estamos esperando que chegue quando chegar o zero.

A playlist de músicas que escutei entre Novembro e Janeiro. Daria para escrever um texto novo só falando do que que cada uma significou nesse período.

Eu tive muitas ideias diferentes sobre contar meu tempo aqui. Esperei o fim do mês de Agosto, que começou em um país, e terminou em outro. Depois contei cada semana até o primeiro mês completo, e o segundo, e o terceiro, até que, com mais duas semanas (14 semanas e mais dois dias), completaram-se os primeiros 100 dias de cada marca significativa pra mim — 100 dias na Coreia, em Daejeon, ou como aluna do KAIST. Entre o Equinócio que marcou o fim do Verão, e o Solstício de Inverno há alguns dias, minha primeira estação completa passou também. Um Outono bonito, gelado e cheio da ambiguidade que os tons de vermelho, laranja e amarelo das árvores trazem. Eu me vi um pouco na nudez dos troncos, nos jardins que eram tão fartos de folhas, e pareciam guardar tantos segredos, antes que fossem despidos pelo frio, e eu sobrepusesse mais e mais camadas de casaco, como quem se protege do vento e da sensação de estar indefesa fora da própria zona de conforto.

Parece besteira, mas pensei muito em como contar o tempo porque estava pensando muito em qual a melhor forma de fazer sentido dos dias, porque estava ansiosa pra escrever sobre tudo. Eu escrevi muito desde que cheguei, mas nada que fosse digno de vir a público, porque pareciam fragmentos confusos da minha vontade de achar um fio a partir do qual todas as experiências pudessem se conectar. Penso que a Luisa de 18 anos encontraria uma narrativa mais rapidamente que a de 27; não que minha imaginação tenha atrofiado tanto assim, mas porque já não tenho mais aquela pressa de quem não se importa com as consequências das ideias que deixa crescer. A Luisa de 27 ainda cria histórias sobre tudo o tempo todo, mas morre de medo delas na mesma proporção, porque tem o vício de sempre acreditar demais que sabe exatamente o que está acontecendo, e no fim das contas não sabe de nada. E odeia a sensação de voltar à estaca zero, reorganizando os fatos, jogando o jogo dos números para encontrar uma forma de dizer que, na verdade, tudo sempre esteve sob (meu) controle.

A passagem das estações no campus do KAIST, entre o fim de Agosto e o fim de Dezembro. Acervo Pessoal.

Esse deve ser o perigo de fazer questão de fazer conta do tempo — a forma que o acúmulo nos leva a criar expectativas sobre o que eles significam, a ansiedade que espera que os fatos confirmem que todo esse tempo serviu, sim, ao propósito maior de nos fazer crescer, e não foi gasto em vão. Como uma forma de nos certificar de que continuamos em movimento, mas nem sempre é claro o ponto de partida, a referência de onde saímos até chegarmos onde estamos. Para quem é crente (como eu), a certeza de que todas as coisas cooperam para “o nosso bem” só resolve até o ponto em que a gente se conforma com a abstração do que esse bem significa. Nesse sentido, acho que a terapia me ajuda a fazer a ponte entre o abstrato, e o concreto. Por outro lado, vejo no meu feed quase vazio do Instagram minha dificuldade em explicar com imagens as camadas mais profundas do que minha vida nova significa. Eu já não tenho mais a mesma urgência de me compartilhar na internet — não como tinha há alguns anos. Mesmo assim, confesso que guardei muitas fotos, de coisas e pessoas e lugares, porque estava esperando passar pela marca dos 100 dias, para fazer uma única, grande postagem, de “tudo” que essa nova estação havia me dado. No fundo da minha cabeça — no lugar onde ficam os pensamentos que deixamos estar sem admitir que eles existem — foi onde eu me deixei imaginar como essa postagem seria, quais fotos poderiam representar as pessoas queridas que eu conheci, e que fizeram esses dias mais bonitos, e significativos.

Pensar em como eu postaria sobre os primeiros meses era só uma expressão do desejo de solenizar o tempo passado, mas me mostrou que eu talvez eu não estivesse errada em ter medo dos meus próprios pensamentos e narrativas. Mesmo em tão pouco tempo, aconteceram coisas suficientes para mudar (e muito) a imagem mental que eu tinha da minha nova vida, quase semanalmente. Não seria isso uma prova de que eu continuo em movimento? Mas talvez não fosse a prova que eu queria, porque também é a prova de que as coisas mudam muito mais rápido do que eu consigo prever. Nesses momentos, eu me dei conta, repetidas vezes, de que minha vida aqui ainda é tão pequena, quase ínfima e ridícula, perto da dimensão que a gente espera que a vida tenha aos vinte e tantos. Ela não deixa de significar muito pra mim, que a vivo todos os dias, mas também não deixa de ser um desafio encher um pote vazio com memórias, com coisas que se repitam de forma constante o suficiente para que eu me lembre que aqui é uma casa, e não um retiro de férias, ou só um devaneio que tive enquanto tomava café.

Fotos do show do Stray Kids que eu fui em Seul, em Setembro, que eu havia guardado para um photo dump dos primeiros 100 dias.

Nessa confusão de eventos e pensamentos, a escala mais apropriada que encontrei para dimensionar esses quatro meses foram frutas. Abundantes no Brasil, elas se tornaram um item mais caro, e raro, na minha rotina. Nos mercados da Coreia, várias são vendidas em unidades, selecionadas e imaculadas, embaladas como um presente. Até hoje não recebi uma fruta com laço, mas toda fruta que recebi veio enfeitada com aquele afeto trivial de quem está feliz em compartilhar um pouco do que tem.

Cada um de nós sabe onde dói mais quando nossa ilusão de estabilidade é abalada. Meu maior medo era nunca me sentir parte desse lugar, de forma alguma, e essa foi a raiz de toda a ansiedade e desespero que me consumiram, em maior ou menor escala, nas entrelinhas desse semestre letivo. Minha relação com a falta de pertencimento é complicada desde a infância; mesmo com os aprendizados e tranquilidades que o tempo trouxe, toda vez que entro em um lugar novo, os mesmos traumas antigos ameaçam me assombrar de novo, e essa mudança não foi diferente. O primeiro rascunho deste texto era uma reflexão sobre o pânico que eu sentia quando saía de casa, e não encontrava nada familiar, que me trouxesse qualquer dose de conforto ou segurança; foram muito longos os dias costurando percepções até que meu corpo e minha consciência entrassem em acordo sobre onde nossos pés estavam plantados. Eram os dois lados da moeda do que me aterrorizava — quanto tempo levaria para que eu estivesse em paz completamente sozinha, e quanto tempo levaria para que eu estivesse em paz no meio de muita gente. Eu conseguia imaginar que seria difícil, mas minha imaginação estava convencida de que seria mais fácil do que foi (ou tem sido).

Eu sentia falta de leveza, de uma forma quase paradoxal, porque percebi que não ter vínculo ou raiz alguma que me prendesse a esse chão era um peso para mim. Descobrir a existência desse peso foi uma surpresa difícil de processar, que ocupou meus pensamentos e deu força às minhas ansiedades. Por isso, eu me lembro da alegria banal, mas significativa, que senti quando recebi tangerinas de presente pela primeira vez, de uma amiga que havia ido para Jeju. Eram três unidades pequenas, de casca fina e brilhante, que me contaram que nós tínhamos um vínculo que poderia durar para além do trabalho em grupo que havíamos feito juntas. Depois, ganhei mais uma, de um colega de laboratório, e uma sacola cheia da tia muito gentil, de cabelo vermelho, que trabalha na loja de conveniência do meu dormitório. Toda vez que vou à igreja, ganho mais uma ou duas — até três, se eu recusar ainda que uma vez. Foi assim, depois de algumas semanas pisando em ovos,  sem saber bem se algumas pessoas me tratavam bem só por educação ou obrigação, que eu finalmente comecei a colecionar pequenos testemunhos da natureza das conexões que estava fazendo aqui, e pude sentir alguma leveza de novo.

Tive um exercício de gerar imagens pelo DALL-E 2 e eu escolhi tentar algo que falasse sobre a leveza (ou a falta dela). O prompt foi “weightlessness, low-exposure photograph, bw”, geradas em 8 de Outubro, 2022. Usei a #2 no trabalho e fiquei empatada em 2º lugar em uma votação dentro da turma.

A minha fruteira de estudante estrangeira já recebeu e deu um tanto nesses quatro meses — várias tangerinas, ou as uvas mais suculentas que já provei na vida, caquis, kiwis, morangos — que eu sempre divido com mais um alguém, porque são demais pra uma pessoa só comer em tempo hábil, e nós somos apenas estudantes, afinal de contas, fazendo o possível para dar conta de ter vinte e tantos dentro da universidade, criando uma vida que tenha valor e significado. Além das tangerinas, foram um punhado de pacotes compartilhados de bolachas e biscoitos, dadinhos de chocolate, convites para jantar, tomar café ou soju, caronas, e muitas idas às lojas de conveniência. E tudo diz alguma coisa sobre quem se abre para se importar um pouco.

Nos gestos pequenos das pessoas ao meu redor, eu sentia como se deixasse de ser um decalque na paisagem, e tivesse corpo e presença próprios nessa nova realidade. Foi assim que a metáfora da minha cesta de frutas se tornou o recurso narrativo favorito do começo da minha vida na Coreia. Pelo preço, pelo significado cultural, pela antecipação de que chegue o tempo da fruta de cada estação. E gosto da parte que me força a pensar na questão das diferenças. Meu Deus, como é clichê falar de diferenças entre um lado do mundo e o outro, mas como é impossível escapar delas! Nem mesmo as frutas que como aqui são as mesmas que as que comia em casa, ainda que as chame pelo mesmo nome. Dia desses, ganhamos um caqui como cortesia em um restaurante muito gostoso que visitei; era minha segunda ida àquele lugar, e o dono ainda se lembrava do que eu havia pedido na primeira vez, quase dois meses antes (e quem se esqueceria da estrangeira de cabelo azul-piscina?). Foi minha primeira vez provando um caqui oriental; a casca era fina como a dos que comia no Brasil, mas a textura era mais firme, menos suculenta, não se desfazia nas mãos. O sabor era adstringente; diferente. E mais saboroso, pro meu paladar.

Alguns momentos especiais que lembrei de registrar. Recortes das frutas que ganhei de presente, a primeira vez em que visitei meu restaurante favorito (a convite da minha labmate), e o dia em que dei um jeito de achar um limão na rodoviária de Seul, para minha amiga que estava passando mal.

As tangerinas que comi aqui também são diferentes — são mais delicadas, menores que as mexericas que minha mãe colocava na mesa depois do almoço, mas a casca finíssima requer mais habilidade para descascar sem machucar os gomos, ou espirrar suco na roupa. Um dos meus amigos da igreja aqui, que é do México, sempre pede que eu descasque pra ele, porque ele não consegue fazer bem sozinho. E eu penso muito em todas essas coisas — pelas piadas que fiz e ninguém entendeu, pelos acenos não respondidos nas ruas e corredores, pelo sarcasmo corriqueiro que soava rude por acidente, pelo estranhamento da facilidade ou dificuldade com a qual alguém fala da própria vida. Penso muito em todas essas coisas, por todas as vezes em que eu fiz algo de errado, ou achei que fiz, e me culpei. Não seria esperar demais acertar tudo de cara, ao tentar abrir sozinha uma tangerina tão delicada pela primeira vez?

Penso também em como é preciso algum cuidado ao manusear hoje a casca da fruta que eu quero comer amanhã, para preservar a textura viçosa e o cheiro doce, que fazem lembrar que ela é recém-colhida. Mas esse perfume da fruta fresca, que enche meu quarto e estampa minhas mãos, tem data de validade, e ela precisa ser apreciada e consumida com uma certa velocidade, antes que deixe de ser um presente, e se torne uma inconveniência. E então fica a expectativa de repôr quando acabar esse punhado, e eu fecho o círculo dessa alegoria com a promessa de que tudo que me acontece aqui é bom no quanto é corriqueiro, cheio da medida banal de amor que consegue fazer com que o nascer e morrer dos dias seja mais suportável, e que os momentos sozinha se pareçam menos com solidão, e mais com solitude. Não precisa durar para sempre, mas é doce, e enche os olhos (e faz bem pra saúde, se você pensar por esse lado). 

Mesmo assim, seria mentira dizer que não lamento pelas coisas que vieram e foram tão rápido, sem reposição, na minha vidinha de wegugin, estrangeira nessa terra. Vira e mexe, a expectativa não-realizada da reciprocidade me leva a pensar no que eu posso ser para quem me vê. Nesse programa de Mestrado, eu vou me demorar mais que uma tangerina, caqui ou cacho de uvas resiste na minha fruteira, então entendo que preciso continuar entregando e recebendo novas demonstrações do que as pessoas significam pra mim, e do que eu significo pra elas. Gostaria de não descobrir mais nenhuma vez que estava errada sobre o que alguém pensava de mim, mesmo sabendo que isso sempre pode acontecer, porque o risco e a incerteza fazem parte da equação de resolver se abrir pras pessoas. Mas o ponto mais importante dessa reflexão é que, antes mesmo de decidir que queria tentar vir para esse país, eu já sabia que só dá certo ser exatamente quem eu sou do lado de fora da minha casca se eu não tiver medo de ficar triste. Como bem disse minha amiga Dora Sanches, “quem sente medo de ficar triste também tem medo do amor.” Sem amor — ou a expectativa e a esperança do amor — não tem troca; os corações não se abrem, os vínculos não se sustentam, o peso do estranhamento nunca vai embora, o corpo e a mente nunca entram em acordo sobre o lugar da planta dos pés.

Mais um punhado de memórias boas que fiz com pessoas especiais.

Enquanto escrevo, converso com minha amiga Ashley — Coreana-Americana, Mestranda, que mora em Seul, e voltou para os Estados Unidos para passar o fim de ano com a família. Ela é uma cantora-compositora, uma das pessoas mais sensíveis que já conheci, e todas as nossas conversas sempre terminam com a mesma pergunta — como seria viver com um coração que agoniza menos todos os detalhes de todas as coisas? Não sei se temos, ou se jamais teremos resposta. Mas é por isso que eu gosto de metáforas — é da natureza delas nos fazer pensar menos nos detalhes que elas não explicam bem. Se eu quisesse, poderia extrair muitas outras camadas de significado sobre as frutas que ganhei neste semestre, mas também poderia ter contado essa história a partir do meu hábito de sempre ter chicletes comigo, e oferecer para todas as pessoas ao meu redor. Em ambos os casos, vemos duas mãos estendidas — uma para dar, outra para receber. Minha cesta de frutas perfumadas vai ficar bem enquanto continuarmos dando e recebendo, e eu for capaz de sofrer menos pelo que se perdeu, ou nunca mais voltou. Essa é a arquitetura dos relacionamentos que abre espaço para que a gente crie raízes — o processo é irregular e incerto, mas as trocas me lembram que eu não sou a única pessoa tentando se encontrar no meio disso tudo aí.

O lado bom é que eu sinto meu coração sendo renovado dentro do meu peito. Mesmo sob a ameaça de todas as coisas que me aterrorizam há tantos anos, eu me mantenho sensível às pequenas bênçãos corriqueiras, e deixo que elas curem mais um pouquinho do meu medo de seguir em frente. A conversa de que a dor é uma zona de conforto é prova de que nosso instinto pode falhar conosco; nossas percepções, entre a mente, e as superfícies, e janelas do nosso corpo, podem mandar sinais que não sabemos interpretar. Mas eu ainda não me confundi nenhuma vez quando provei um pedaço de fruta, e experimentei seu sabor e textura na minha boca, e tive convicção de que minha mente e meu corpo estão em um lugar só. Talvez esse seja o tal do gostinho de liberdade do qual tanto se fala.

Todas essas fotos aqui tem um contexto que significa muito pra mim, mas tomaria espaço demais explicar todas, então vou deixar para a imaginação dos leitores.

Featured Image by Jonathan Pielmayer on Unsplash

Uncommon Side Effects

Written between late-June, 2021 and early-Feb/2022.

People rarely get the chance to acknowledge when something life-changing is about to happen, but somehow, when I picked up “Down and Out in Paris and London” for the first time a few years ago, I knew I wouldn’t be the same after reading it. I had just returned from the UK, and I was hurting, because I missed the feeling of being home I had experienced there – a feeling that just wasn’t the way I felt at that moment, lying in bed, holding the book, in my own bedroom, in my own house. It’s been a while now, but I still remember how it made me feel. But I can’t remember a single word or passage. I was completely drunk in longing. 

If I think seriously about it, I have not lived an entire year without some radical change in my life for at least 13 years now. I’m not sure if it’s the same for everyone, or the majority, but I am sure I know a handful who have been hanging out with the same people, at the same places, doing the same things, for at least half a decade. I don’t mean to paint that as a negative thing, though, and how could I even do that in the first place, since I have no idea how it feels like. I know how constant change feels like, though; tiring. I’m exhausted. 

On the other hand, I’m the type that gets bored easily. Not everything that’s ever changed has been on me, but God, who’s got His hands all over everything, knows me well enough. I’m not a fan of speculating about unrealised timelines but perhaps I would feel even worse than I do now if I hadn’t seen so many friends come and go endlessly. Perhaps I’ve been online for too long and my body and soul have become one and the same with the space of flows that I have most certainly made my own. But, in spite of all the changes, I think I’m very boring. 

Fast-backward to the person I was in 2016. I had never been abroad before I moved to another continent as a student but I had always enjoyed the concept of being a person who keeps coming and going around. People have argued greatly about the reasons why travelling changes you; you can always wonder about the world that is much larger than the space between the tips of your middle fingers if you open your arms as wide as possible, but to stare into the void is something else. I am strongly against the idea of tourism, though, so I hope you don’t mix things up. 

You don’t have to go far to realise how unspeakably deep is the abyss of the thought of the world. So I’m very comfortable with downsizing when I can’t fight something that feels way too big. Beholding the extent of the world is scary, but I can take refuge in the sweetest memories from travelling that I keep: the several different rooms I’ve ever slept in. I still remember how each one of them made me feel, and how each one of them felt like my own place, or how it did not. The feeling of sleeping in my grandma’s bedroom was uncomfortable, because I was scared of the picture hanging on her wall – but I was not brave enough to tell her. The first night you sleep in a new house always leaves that weird feeling of believing you’re somewhere else before realising you actually moved places. But not when I travel. I don’t remember my body ever forgetting I was in a new place when I left what I called home to make myself at home somewhere else for a while. 

I remember the shape of each of these rooms. My go-to strategy to fall asleep is following the ceiling lines until I know their corners well enough to peacefully zone out. After I became an Architecture student, that habit became a skill. Once, in 2016, I tried to redraw every single room I remembered sleeping in from memory, and I did it well. Two years later, the person I was in 2018 is lying in bed alone, in a tiny, ugly hotel room that I remember all too well, waiting until the clock struck the time she was supposed to shower and get ready to go out. I was listening to Faces on repeat. “I wish that I knew what I know now when I was younger”. The way we always do, but we never learn. The song in itself doesn’t mean anything to me, but I can still remember that ugly bedroom down to how it smelled whenever I go back to “Ooh La La”’s haunting chorus. The person I was in 2018 listened to that song a hundred and too many fucking times before she realised that chorus was about her. 

I enjoy music that I can cry to as much as music that I can dance and vibe to, but I absolutely adore love songs the most. I adore them because, of all the different types of songs, they’re the ones that always feel right and desirable, like there’s a good reason they exist. I always keep a bunch inside my heart, even when I don’t feel anywhere near feeling anything, because some of them can make my heart flutter for no particular reason. I remember feeling like I was the main character in a love song only twice in my life – once in 2013, then in 2017 (the same year I read “Down and Out in Paris and London”). I longed to be back where I felt at home and reading the book made me feel like I could accomplish it anytime soon. And I wanted to believe it so bad. I was happy to dream about the life I was about to build. But it was not about the place anymore. Damn, I was so foolishly in love. Someone hugged me in a way that tricked me so deeply I believed I had found home. It wasn’t the land. I was so foolish, and it’s even hard to acknowledge just how foolish, because, looking back, I have no idea how I felt safe and sound where I didn’t belong. Like a lonely piece of garlic trying to fit into an orange missing a bite. I was so foolish, and I was so blind. 

That’s the most fucked up thing about everything. I felt safe where I didn’t belong. How am I supposed to find a safe place, especially now that I realise I don’t know what it looks or feels like? I try to think about the things that have come and gone over the years, and my uncertain ways through the world, and what remained, and I wonder if that’s the direction I’m supposed to take. I try to recap every single bedroom I’ve ever been into to see if how each one of them felt like my own, or how it did not, can help me figure out the answer. I think about my family, and the friends I love the most, and the songs that I enjoy dancing or crying to, and I still don’t know if I’ve ever been anywhere near as close to home as I suppose I should have by now. How can I even tell that I’m a part of the world besides the fact that I have a body, and an incarnated conscience, and that air gets out of the way whenever I move back and forth trying to figure out where the hell I belong? 

I wish that I knew what I know now when I was younger; as she read that book, the person that I was in 2017 felt transported to the invented memories of where she wanted to be. That’s creepy, but that’s how impatient, bored, nomad hearts figure out how deeply desperate they are to find a place to rest. Sadly, it took me long to grow out of my desperation, just enough to see the red flags first. I feel like I’ve been hanging for a long time, because something so small left me stuck in a room with a puzzle instead of a door lock. All my life I’ve seen people come and go out of their trauma and move on without ever cleaning up the room in the first place so why did it have to be me the one taking turns to find out what’s wrong for years? I’m desperate about making all wrongs right by all standards of righteousness, and I’ve never shied away from seeing my mistakes for what they were. 

But it wasn’t only my mistake. It wasn’t. For the longest, I tried to take responsibility for my own life by not attributing fault to others. I thought THIS was a righteous choice, but it’s not, because, when I started spitting all the things I was keeping inside, I blamed myself when he chose not to say anything in return. And, even as I write now, years after I closed that page and burned it to the ground, I still feel the gutting punch of bitterness of all the things I wanted to say so badly, but that I couldn’t. He made me feel like I was just about to take off and I never unlearned it, but it’s been so long, long enough that I honestly don’t even care about him anymore. I had to think deeply, and for years, before I realised that I could only easen my broken heart if I got rid of the weight of all the words I kept locked inside. That was unthinkable; I was desperate because they had no place to go. How could I simply let them fall to the ground? 

Then, one day, I read that the number one reason why love songs exist is because there are volumes of things about love that might end up written anyway, but which are better left unsaid. It was something that simple, almost stupid, if you say it out loud. But I think the mental image of all the love songs I had been keeping inside of me being anything other than a love song made the whole thing seem very silly (but I was glad to have a laugh). Something shifted inside of me, something that made all of the things in the deepest pits of my numbed-down heart light up so that I could finally come to terms with all the words I had been choking on as I hung, high and dry. Words that had no place they could get to were better left to fall and crash and melt into the ground. Being content with their fate, trusting these silly little outcomes might mean that downsizing was the right choice from the get-go. It’s a weird feeling but I think it’s the closest to home I must have ever been. I still don’t know how to describe it, though, so perhaps it’s an open-ended resolution, but if I can make my way out of this mess, it should be enough. 

Photo by Pawel Czerwinski on Unsplash

O que encontramos do outro lado das ondas

English version here.

Anos depois de lançar Rubber Soul (1965) com os Beatles, John Lennon contou que a faixa “In My Life” foi a primeira que ele “conscientemente” escreveu a respeito da própria vida. Até aquele momento, as letras das músicas que escrevia eram apenas peças secundárias do processo de construção pop, ainda que ele fosse pessoalmente fascinado, desde a infância, pelas riquezas e potenciais de jogos de palavras – que ele lia nos trabalhos de Lewis Carroll – e guardava o hábito de escrever poemas e contos que recontavam episódios da sua vida através das lentes do absurdo, para entreter-se e aqueles à sua volta. Em 1964, Lennon chegou a publicar uma coletânea desses trabalhos, intitulada “In His Own Write”, o que levou à situação em que um jornalista, chamado Kenneth Allsop, perguntou por qual razão suas canções não tinham aquelas mesmas qualidades literárias, ou porque ele nunca fazia referências à memórias e experiências pessoais.

Trecho da página 319 do livro “The Beatles as musicians : the Quarry Men through Rubber soul” de Walter Everett (2001). Do Internet Archive. “In My Life” John Lennon: “Eu acho que ‘In My Life’ foi a primeira canção que eu escrevi que era realmente, conscientemente sobre minha vida, e foi motivada por um comentário que um jornalista e escritor na Inglaterra [Kenneth Alsopf] fez depois do lançamento de In His Own Write… Ele me disse “Por que você não coloca um pouco da forma que escreve no livro, daquele jeito, nas músicas? Ou por que você não coloca algo sobre sua infância nas músicas?” Castigado, Lennon se pôs a trabalhar, descrevendo a vista ao longo do trajeto de ônibus que ia de sua casa em Menlove Avenue até o centro da cidade:” [Tradução livre]

A situação foi o suficiente para impulsioná-lo a tentar; o tempo acabou se revelando muito oportuno porque, a despeito do fato de que, em si, Lennon já possuía as sensibilidades líricas necessárias, os anos vindouros acabariam honrando Rubber Soul como o álbum que representou uma transição fundamental na história da banda, passando do frenesi da Beatlemania para o processo de redefinição dos limites dos sons do pop que ocupava o topo das paradas. Os temas por trás de “In My Life” são bastante simples – nostalgia e saudade, as coisas que ficam porque vale a pena guardá-las, mesmo quando o resto já se reduziu a nada. Mesmo que não fosse, de fato, um dos singles promocionais do álbum, acabou se estabelecendo como uma das músicas mais amadas da cultura pop; o imperativo do tempo, nossa absoluta falta de controle sobre ele, é um dos maiores, senão o maior, tema recorrente da história criativa da humanidade, dos que desperta nossas qualidades mais elevadas, e nossas dores mais profundas. São músicas como “In My Life” que dão às coisas mais assustadoras uma dimensão manejável; elas dão escala à passagem dos dias e anos, articulando a sensação esmagadora de não poder voltar atrás até que ela pareça pequena o bastante para caber num verso. 

De certa forma, este é o maior triunfo que a música pop poderia almejar – a força que sustenta gerações sobre o cruzamento entre letra e música, porque a forma como algo soa faz soar algo dentro de nós também. Claro, estou sendo poética agora porque, neste momento, também sinto algo esmagador dentro de mim, e não quero pensar muito nas camadas sócio-políticas econômicas e culturais das coisas. Eu sei que o tempo não é o mesmo para todos, e que sequer vivemos todos a mesma dimensão das 24 horas de cada dia. Mas, mesmo assim, conforme os anos vão, e paramos para contemplar o que já foi, o peso da passagem só faz com que certos clássicos fiquem ainda mais fortes, continuando tão significativos e relevantes como nunca, ainda viajando pelo imaginário de novas gerações, e trazendo à existência novas realidades. Por exemplo, quando o rapper Coreano B.I escolheu nomear os Beatles, especificamente Rubber Soul e “In My Life”, quando foi perguntado sobre sua primeira inspiração musical, numa entrevista promocional com o Buzzfeed para seu primeiro álbum como solista, em 2021. 

Kim Hanbin, 25 anos de idade. 131Label.

No decorrer de sua carreira que, aos 25 anos de idade, já cobre um período de quase 13, B.I (nascido Kim Hanbin) falou várias vezes sobre a importância de filmes e poesia em suas composições. Ainda jovem, ele descobriu que, através de outras obras, particularmente cinematográficas, ele podia experimentar e descobrir como articular coisas que não havia vivenciado por conta própria, de formas que ainda poderiam produzir imagens vívidas, e suscitar sentimentos fortes de seus ouvidos – sua maior aspiração como artista. Em suas próprias palavras, o trabalho dos Beatles, especificamente suas melodias mais tranquilas, e a carga de significado em suas letras, eram uma grande fonte de inspiração. Quando ele escolhe citar uma música como “In My Life” como fundamental no processo de se tornar o artista que ele busca ser, eu posso imaginar que talvez ele esteja se referindo à forma como a canção traz à tona uma linha de pensamento da saudade de uma forma tranquila, quase jubilosa, sem diminuir a carga dos baixos, mas fazendo com que os altos pareçam uma realidade possível. Mais que qualquer outra coisa, não é sobre um anseio que te deixa emperrado no que passou, mas sobre a liberdade de seguir em frente com confiança, carregando consigo as memórias mais valiosas, como um tesouro. 

Apesar de já atuar como rapper desde 2009, sua carreira como solista não começou oficialmente até o lançamento da música “illa illa”, dia 1º de Junho de 2021, carro-chefe de seu primeiro álbum WATERFALL, lançado sob seu próprio selo. Antes disso, ele já tinha reconhecimento como líder e principal liricista do grupo iKON, entre 2015-2019. Seu trabalho lhe rendeu um prêmio de “Compositor do Ano”, em 2018, depois que a canção do grupo “Love Scenario” se tornou um mega hit na Coreia. Inspirada pelos dez minutos finais do filme La La Land (2017), é uma música que não soa particularmente feliz, nem triste. Ela se move em círculos, sem a força motor de uma estrutura que conduz a um grande clímax, optando por dar voltas em torno do refrão, tal qual a mente de uma pessoa que está se preparando para virar a página e deixar pra trás o que precisa ser deixado, mas fazendo o possível para carregar consigo as memórias que mais valiosas, como um tesouro.

Kim Hanbin aos 13 anos, já usando o nome “B.I”, em 2009, em um dos palcos para a música “Indian Boy” de MC Mong, da qual ele participou. MBC’s Show! Music Core, MBCKpop.

Existe uma divisa entre B.I, o líder de grupo e compositor por trás de “Love Scenario”, que vemos rodopiando em torno de memórias, com seus companheiros de grupo, no clipe da música, e B.I, o solista, emergindo do mar, sozinho, no começo do clipe cinematográfico de “illa illa”; esta, assim como aquela, também é uma música que não soa particularmente feliz, nem triste. O título em Inglês é uma palavra inventada, que muito se assemelha aos ideofones coreanos que representam o movimento ondulado das ondas. Em Coreano, se chama “해변” [haebyeon], que significa “praia”. Os primeiros versos, que, no clipe, crescem progressivamente como os sons de quando tiramos a cabeça da água, foram incorporados do poema “O Sabor de Doces e Praia” [사탕과 해변의 맛] do poeta Seo Yun-hoo – “existe uma praia na ponta das minhas mangas / por ter enxugado as águas que estavam escorrendo pelas minhas bochechas.” A escolha dessa metáfora bem específica dá estrutura à uma canção que é sobre ser engolido pelas ondas de um oceano feito das próprias lágrimas pesadas, salgadas e quentes.   

Eu passei alguns dos meus melhores anos escolares me dedicando a ler e dissecar poetas e sua poesia, mas algo sobre a natureza da música pop me faz preferir abordar composição de uma forma diferente. Separar minhas canções favoritas das pessoas que as escreveram com certeza me dá mais espaço para que eu me aproprie delas. Mas, como escritora, preciso admitir que fico feliz em poupar artistas de falar sobre coisas que eles talvez prefiram guardar. Para mim, a decisão de publicar ou não algo que escrevi depende muito de quão vulnerável eu me sinta – eu posso decidir guardar coisas pra mim na eventualidade de sentir que é fácil para que outros entendam do que eu estou falando, se for algo cujos detalhes eu prefira deixar no ar. Escolher se abrir diante das pessoas de uma forma que dê à elas a chance de especular é um ato de bravura. Nesse sentido, acho que o B.I é corajoso; quando “illa illa” foi lançada, ele ainda aguardava sentença num julgamento por acusações de tentativa de compra de drogas ilícitas em 2019. A política nacional sobre drogas da Coreia é bastante rígida. O processo foi a causa de sua saída de seu antigo grupo e agência.

Não se esqueça de ativar as legendas.

De forma semelhante à “In My Life”, “illa illa” descreve sentimentos e memórias vívidos que parecem específicos e detalhados o suficiente para serem fruto de experiências pessoais – a escolha de palavras tem aquele tipo de pungência que resulta de pensamentos que só passam pela mente de quem vivenciou certas coisas em primeira mão. Por conta disso, ambas as canções têm sua dose de subjetividade, mas ainda são conscientemente feitas generalizadas para que se encaixem com facilidade na vida de qualquer um. A visão original de Lennon era uma descrição de um trajeto de ônibus que ele fazia do seu bairro ao centro da cidade, mas ele preferiu descrever a trajetória dos seus próprios pensamentos através das memórias que ele tinha do lugar em sua mente. Ao escolher abrir a canção com a metáfora do poema de Seo Yun-hoo, que também funciona como o pré-refrão da música, B.I diz aos ouvintes exatamente onde ele se encontra no momento – e não é especificamente sob nem fora das águas, mas também não é à beira-mar. 

Talvez essa seja a razão pela qual o tema do oceano passa uma impressão revigorada aqui, mesmo que afogar-se numa piscina de lágrimas seja tão antigo quanto as aventuras de Alice no País das Maravilhas. Kat Moon (2021), para a TIME, escreveu que B.I foi além da “[tentação] de focar na natureza ilimitada do oceano na praia”; a reflexão é pessoal e, assim como a faixa segue em círculos em torno do pré-refrão e refrão, as metáforas são muito mais centradas no próprio corpo como início e fim de todas as coisas. O mar se encontra dentro, por dentro e pra fora da suas extremidades, até mesmo as ondas de memória que o atingem, indo e vindo e arrastando para longe tanto as coisas boas quanto as coisas más. Existe um sentido de antecipação, mas o clímax não é alto e estrondoso como uma tempestade, mas apropriado para os primeiros passos de alguém se ajustando para um recomeço. O ritmo caminha a passos firmes, gentis, e seguros. 

O resto do álbum WATERFALL é imperdível, na sua forma de contar uma história, ou várias. Logo antes de “illa illa” vem a primeira faixa, também chamada “Waterfall”. Esta parece uma abordagem muito mais violenta, e íntima, dos mesmos tópicos – dor, raiva, vergonha, perda, escrutínio e a dimensão das consequências de uma queda. Diferente do oceano, que é, em si, grande o bastante para recolher e abrigar as mais calmas e mais violentas correntes, uma queda d’água se move em apenas uma direção. Mesmo assim, sabendo que todos os rios correm para o mar, o fim de uma cachoeira pode ser a razão pela qual, independente do quanto ele cante sobre ser varrido pelas próprias lágrimas, “illa illa” também não soa particularmente, nem intensamente, triste; no ondular das ondas, na mesma medida em que ela fala sobre afundar, ela fala sobre emergir. E é justamente por isso que é tão difícil separar essa letra da pessoa que a escreveu – no fim das contas, é um retorno; é uma declaração. Das 12 canções que compõem o álbum, a última faixa é chamada “Próxima Vida” em Coreano, mas “Re-Birth”, “renascimento” em Inglês. É uma música doce sobre amor e destino, mas eu não consigo deixar de pensar em como se torna um termo apropriado para alguém que parece decidido a emergir das águas, tantas vezes quanto for necessário.

“Waterfall” Performance Film. B.I é muito bom e eu preciso que você saia desse post com plena convicção disso.

Uma das minhas descrições favoritas do mar está no Livro de Apocalipse, quando o apóstolo João fala da cidade celestial, a menciona que, diante do Trono de Deus, repousava um Mar de Vidro. Existe uma pequena promessa escondida ali; águas que são tão calmas que se tornam como cristal, um sinal do que vem no final dos sofrimentos, depois do fim dos altos e baixos do mar bravo – paz. Quanto mais eu penso sobre isso, mais percebo que a razão pela qual eu gosto tanto de “illa illa” é porque esperança, mesmo a mais fraca chama, é uma característica que só se encontra em quem passou pelo inferno, mas sobreviveu. Mesmo que a paz de agora seja só a calmaria antes de outra tempestade, se elas ficarem imóveis só por tempo suficiente, e se estivermos dispostos a olhar com atenção por tempo suficiente, elas podem se tornar como um espelho que reflita nossa própria imagem transformada. Um pouco depois de quando nadou em uma piscina das próprias lágrimas, a pequena Alice se encontrou do outro lado do Espelho; ela estava contemplando as profundidades do próprio reflexo e considerando as extensões das distâncias literais e imaginárias que ela podia conceber, para além dos limites das imagens virtuais refletidas em seus olhinhos naquele momento. É exatamente isso que encontramos, se pudéssemos recuperar algo enterrado das profundezas do oceano, ou chegar ao outro lado do espelho – a versão de nós que virá à tona quando as superfícies forem agitadas e despedaçadas, e nós, finalmente, engolidos.

Mas não me entenda mal; na verdade, eu ainda insisto na minha escolha de não pensar demais sobre as músicas das quais eu mais gosto. Eu sempre trabalho duro para resistir à tendência aos solipsismos que a internet imprime em nós sem que a gente sequer se dê conta, então este não é um desses casos, tanto quanto é simplesmente, como mencionei antes, uma forma de ajudar a liberar a música pop da obrigação de fazer muito sentido. Se eu pensar bem, pelo menos desde o parágrafo anterior, estou falando exclusivamente sobre mim, mas, como também mencionei antes, não é possível simplesmente apagar o fato de que WATERFALL contém declarações que podem ser ouvidas com clareza de uma certa distância. Não sou do tipo que gosta de romantizar a dor, muito menos a dor dos outros, mas estou sempre procurando formas novas de dar novas formas à minha, e me desprender até me soltar completamente das razões pelas quais ainda acordo com um pouco de desgosto, e saudade, todos os dias. Minha parte favorita de “illa illa” é a ponte – a promessa de construir outro castelo de areia, mesmo que simplesmente se desmanche de novo; eu não faço ideia do que a areia significa, mas eu creio que é a minha própria matéria-prima que define do que é a feita a praia no canto dos meus olhos. Mesmo assim, não acho que entender isso importe tanto quanto a decisão de continuar recomeçando. Como Arquiteta, sei que, independente do que esteja fazendo no momento, meu chamado na vida ainda é construir alguma coisa. 

“Penny Lane”, the accomplishment of Lennon’s original vision for “In My Life”. 1967.

Depois de lançar “In My Life” em 1965, levou mais cerca de um ano e pouco para que Lennon entendesse como articular os detalhes específicos de seus sentimentos e memórias de uma forma que fizesse sentido como uma música para que outros escutassem, com “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane” (cuja letra, na verdade, é mais creditada ao McCartney). Já passou tempo suficiente para que várias, ou todas, as camadas escondidas na sua música tenham sido trazidas para fora, bem como suas implicações, e multiplicações, mas B.I ainda é um caso em curso, escrevendo a própria história. Talvez no futuro ele também encontre em si a disposição, as palavras e o momento oportuno de falar de formas diferentes sobre sua caminhada, e pode ser que disso saia algo radicalmente diferente daquilo que parece ter sido expresso até agora, porque temos tão pouco controle sobre o futuro quanto temos sobre o passado. E não tem absolutamente nada que possa ser feito a respeito, exceto talvez imaginar, e escrever sobre isso. 

Visualizador de uma das minhas favoritas do álbum, “Daydream”, com participação da cantora Lee Hi.
Minha música favorita dos últimos meses, “Vela Azul” [푸른 돛], Towner & Town Chief (1986). “Mas aquela onda é tão alta, amigo, que acho que deveríamos içar as velas”

minha música (esquecida) favorita

Você é do tipo que gosta mais das músicas que são esquecidas no churrasco da discografia do seu artista favorito? Eu também.

For an English version, click here.

Eu sou uma grande fã de K-pop. Não tem tanto tempo assim, mas ao longo dos últimos anos eu me tornei realmente apaixonada pelo mercado de idols, ao ponto de estar ativamente envolvida em produzir conteúdo, e até material acadêmico, a respeito. A razão pela qual eu gosto tanto? Bom, é mais difícil de explicar do que o que cabe em um parágrafo [mas você pode ler sobre isso em outros textos meus], mas, do meio de todos os diferentes conceitos, performances, coreografias, vlogs e programas de rádio feitos por rostinhos bonitos vestindo roupas bonitas, eu recebo música. E eu amo música, e, por aqui, eu sempre encontro música nova pra aproveitar. 

Já que você está aqui, já escutou a melhor música do ano de 2021?

Um dos meus grupos favoritos se chama NCT 127. Eles são um grupo de 9 membros, que debutou em 2016 sob a SM Entertainment, uma das gigantes da indústria. Eles fazem parte de um grupo maior, chamado apenas “NCT”, que tem 23 membros divididos entre grupos diferentes – e um deles é o 127. O NCT tem um conceito rotacional, que pode ser difícil de explicar pra quem é completamente novo (mas que é a forma mais simples de explicar as fotos com dúzias de rapazes que o Google te mostra quando você pesquisa o nome deles). De qualquer forma, a coisa importante é que o  NCT 127 é um grupo com música excelente. Eles são conhecidos por testar os limites e as tendências do mercado – o que significa que seus lançamentos nem sempre são unanimidade, mas tudo que eles lançaram nos últimos seis anos resultou em uma discografia bastante interessante. 

Os 23 membros do NCT, durante as promoções do projeto “NCT 2020”.

Minha música favorita do NCT 127 se chama “100”. É parte do primeiro álbum single em Japonês do grupo, Chain, lançado em 2018. Os créditos são do cantor-compositor Andrew Choi, que também faz parte da SM Entertainment, e do compositor Yunsu (SOULTRiii), que já trabalhou com outros artistas da SM (como o trabalho solo do cantor Baekhyun, membro do grupo EXO, e meu grupo favorito de todos, SHINee, sendo creditado pela excelente “Chemistry” no álbum The Story of Light pt. 2 (2018)). O álbum single em si é incrível, com cinco músicas fortes que falam muito do potencial do grupo, do primeiro ao último dos seus 18 minutos de duração. “100” é a última faixa, a cereja do bolo; é excepcional, com um instrumental que é tão pernicioso quanto é previsível, mas sem deixar de ser interessante, e uma ponte que prepara o terreno perfeito para uma das minhas codas preferidas em uma música pop. Eu já escutei “100” dezenas de vezes, e em nenhuma dessas vezes eu cheguei até o fim da música sem sentir um arrepio que fosse. 

Tem uma outra coisa muito importante a ser dita sobre essa música, que é o fato de que ela nunca foi tocada ao vivo. Nunca. 

A maioria dos grupos de K-pop tem atividades bem sérias no Japão – o segundo maior mercado fonográfico do mundo é a opção mais próxima e vantajosa para uma expansão além do público doméstico. Até o momento, o NCT 127 só completou uma turnê (em parte por conta da pandemia), mas, mesmo assim, dos 44 shows que eles fizeram pela Ásia, Europa, América do Norte e Latina, 14 foram no Japão. E, mesmo assim, nessas 14 datas, para uma audiência total de 74,000 pessoas, em nenhum momento eles apresentaram “100”. Eles apresentaram, sim, outras músicas da sua discografia Japonesa que estão entre minhas favoritas, como “Dreaming” (também do álbum single Chain), e “Kitchen Beat” (do seu excelente primeiro álbum em Japonês, Awaken (2019)). Mas, nada de “100”.

Eu sou um pouco dramática quando falo de canções que amo muito escutar; existem aquelas que são para se consumir às garfadas, sendo repetidas infinitas vezes, e existem aquelas que são para se consumir com moderação, porque elas causam uma euforia muito intensa, e deixam um gosto persistente na boca. “100” está mais perto do segundo tipo; eu não gosto de ouvi-la quando não tenho condições de estar completamente presente, porque faço questão de experimentar tudo que ela me oferece, ainda que seja só uma vez. Aliás, é por isso que eu sou fã de K-pop; eu aprecio as performances, as personalidades, mas, em última análise, eu preciso da minha porção sônica todos os dias, e meus grupos favoritos me mantém feliz e bem alimentada, nesse sentido. E a analogia com comida é muito boa, não é? Porque nós tomamos café da manhã, almoçamos, fazemos um lanchinho da tarde, jantamos, e sabemos que nem toda comida cabe em toda refeição. “100” se parece mais com a sobremesa do almoço. A porção é menor do que aquela que eu comi imediatamente antes, mas pode ter certeza de que tudo que eu fiz primeiro foi antecipando aquela boquinha de 3 minutos e 42 segundos. 

Como eu disse, eu sou um pouco dramática falando das músicas que eu realmente amo ouvir. Então, sim, “100” é sempre uma experiência para mim. E, toda vez que eu a escuto inteira mais uma vez, e chego ao final de novo, e me lembro que nunca houve uma performance ao vivo, e que o 127 talvez nem se lembre dela, pra começo de conversa… Eu não consigo não pensar sobre como a experiência da música existe apenas entre os alto-falantes e eu. Os produtores, compositores, distribuidores, e o 127, claro, providenciaram o serviço, mas eles não me conhecem, e sequer precisam se ocupar do fato de que eu gosto tanto dessa música, porque, sejam 10 ou 1000 as vezes que eu aperto o replay, eles podem receber um pouquinho a mais ou menos por stream, mas absolutamente zero feedback sobre essa pobre Brasileira de 26 anos que sempre precisa explicar que ela está falando do NCT 127, e não do SuperM, quando diz que ama “100”.

Este é apenas um exemplo de vários outros que eu poderia tirar da minha carreira de amar B-sides mais ou menos esquecidas, como “Live-in-Skin” do Foo Fighters, “Paradise” do BTS, ou “Signal” do f(x). Não é de propósito, tanto quanto não é minha culpa que eu me apegue à músicas que quase nunca vão parar em setlists. É uma pena, porque eu amo performances ao vivo, e a maioria das músicas soa melhor fora do estúdio, flutuando sobre e através das cabeças do povo, o verdadeiro lugar ao qual elas pertencem. Do meu lado do mundo, eu raramente, ou nunca, tenho chances de ver meus artistas favoritos, então esses vídeos de performances são a melhor forma (ou a única) para que eu experimente uma fração da sensação de estar sob as nuvens sônicas que eu mais desejo provar. Não quer dizer que eu nunca tenha tido um pouquinho de sorte – uma vez, em 2018, quando minha banda favorita de todos os tempos, Foster the People, trouxe de volta aos palcos uma música de 2011, “Broken Jaw”, uma faixa bônus que sequer estava em plataformas de streaming, e que eu amava, mas que não havia sido incluída em setlists havia vários anos (e bem à tempo da minha primeira vez os vendo ao vivo). E, sim, eu chorei um pouquinho, exatamente o que você esperaria de alguém que é um pouco dramática sobre as músicas que realmente ama escutar, mas que, mesmo assim, sabe bem que a experiência emocional intensa que ela associa à ouvir essas músicas é quase totalmente separada das pessoas que trouxeram a música à existência. 

Foster the People apresentando “Broken Jaw” ao vivo no SXSW, em 2011. Assisti essa performance incontáveis vezes desejando viver a mesma experiência.

Claro, isso não é uma discussão sobre as formas como essas músicas só existem devido às pessoas que as escrevem, produzem, cantam e distribuem, mas sobre a distância intransponível que existe entre nós e essas pessoas, que se manifesta em como nos sentimos sobre as coisas que apreciamos, como as consumimos, e quão livremente elas transitam pelas nossas vidas e dispositivos sem grandes conexões com o outro lado além de uma foto na capa, ou créditos impressos em papel. Eu já dei replays infinitos em músicas de cantores sobre quem eu não sei nada além do nome artístico. De certa forma, pelos álbuns, vídeos e tracklists em serviços de streaming, os alto-falantes e telas são muito menos como links, e mais como espelhos, me refletindo para mim mesma. Mesmo que sua superfície se tornasse macia como gaze, mesmo que eu pudesse chegar ao outro lado, eu não encontraria cantores e compositores esperando por mim, mas só eu mesma, sozinha com todas as coisas que tornam aquela experiência minha, todas as coisas que cobrem a distância entre eu e meu reflexo. 

E isso é ótimo! É o que torna isso válido e apreciável, porque, se eu apertar o play, posso ouvir a voz do Doyoung quantas vezes eu quiser, ainda que ele esteja doze fuso horários à minha frente, em algum lugar de Seul. Não é uma performance ao vivo, mas eu ainda assim posso voltar para “100”, “Live-in-Skin” e “Signal”, para “Knock on Wood”, de Red Velvet, e até para “Broken Jaw” – que agora, finalmente, está nas plataformas de streaming, e posso curti-la com facilidade em todas as versões que eu gosto. Por outro lado, minha favorita absoluta do FTP, “Tabloid Super Junkie”, uma faixa exclusiva de pré-venda do Supermodel (2014), segue sendo parte do time de B-sides esquecidas. Mas, pra ser muito franca, eu nem me importo tanto assim. Entre eu e os alto-falantes, eu já fiz a música tão minha que não sei se preciso de mais alguma coisa para torná-la melhor do que ela já é. E talvez seja por isso que seja dela que eu goste tanto. 

Photo by Yannis Papanastasopoulos on Unsplash

nos moldes de um ídolo

Que tipo de artista é um idol?

For the English version, click here.

Meu primeiro contato com idols de K-pop foi em 2009, aos 14 anos de idade, quando eu aprendi que uma das minhas músicas favoritas de uma das minhas bandas alemãs favoritas – “Forever or Never”, de Cinema Bizarre – também havia sido gravada por um grupo coreano chamado SHINee. No ano seguinte, a maioria das minhas colegas que também eram fãs de bandas alemãs haviam trocado Cinema Bizarre, Tokio Hotel e Killerpilze por Super Junior, BIGBANG, SHINee, entre outros. A maioria de nós já tinha um histórico com J-pop e J-rck; eu mesma me interessei rapidamente por Super Junior, por conta do quanto o Heechul me lembrava meu guitarrista de visual kei favorito, Miyavi. Mas esse interesse não durou muito; como uma jovem cristã, eu não conseguia lidar naturalmente com o termo “idol”.

Cinema Bizarre “Forever or Never” live, 2008

Coincidentemente, foi a música “IDOL” do BTS, lançada em 2018, que acabou me arrastando de vez para a indústria, me atraindo com uma sobreposição de percussão tradicional Coreana e Afrobeat que deixavam minhas manhãs de recém-formada (e recém-desempregada) menos insuportáveis. Isso foi há cerca de dois anos e meio. Minha mente adulta, mais educada e esclarecida, foi capaz de se importar menos com as conotações negativas que o termo “idol” me comunicava no passado – ainda que de vez em quando eu ainda tenha que me explicar um pouquinho quando sou questionada dentro dos meus círculos religiosos. Chamar jovens popstars de um nome desses é uma forma bem pouco sutil de deixar claro para qual propósito eles foram criados, mas, mesmo assim, há mais por trás disso que uma escolha de palavras.

Isso é algo que eu digo com frequência – eu sempre fui fã de alguma coisa, desde pelo menos minha pré-adolescência. Ser fã é parte da minha identidade, e parte de como eu interajo com o mundo. Isso é relevante porque, depois que me tornei fã de K-pop, o processo de aprender mais sobre o que o rótulo “idol” significava e o quanto era importante na formação de algumas das coisas que eu mais gostava nesses artistas deu uma forma nova à como eu percebia minha própria vivência como fã. Este texto é uma peça bastante pessoal, e uma primeira tentativa, bastante subjetiva, de colocar em palavras como minha noção de gosto mudou ao longo dos últimos anos, bem como de prestar uma pequena homenagem à um dos idols que eu mais estimo – Hoshi, do grupo Seventeen – , não apenas porque hoje, 16 de Junho, é aniversário dele, mas também porque gostar dele tanto quanto gosto hoje em dia tem muito a ver com meu processo de descobrir o que idols eram de verdade.

BTS, o maior grupo de K-pop do mundo, afirmando que eles são, de fato, idols. Agosto, 2018.

Eu vim para o K-pop direto de uma carreira longa em diversos tipos diferentes de rock, de power pop a pop punk, punk e stoner rock, e todo tipo de sonoridade rotulada “alternativa”. Minhas primeiras percepções como fã eram naturalmente altamente definidas por essa experiência que eu já possuía, mas, ao mesmo tempo, porque havia uma transição bastante evidente em jogo, eu precisei admitir para mim mesma que deveria haver algo específico, potencialmente novo, me atraindo para esse tipo de artista muito diferente (ainda que houvesse alguns paralelos importantes, tantos que até foi escrito um artigo analisando o porquê de tantos antigos fãs de emo e pop punk foram para no K-pop). Eu tinha em mim um sentimento de querer muito ser capaz de apreciar as diferenças tanto quanto as semelhanças. Como eu mencionei antes, eu havia acabado de me formar, então minha cabeça ainda estava cheia do processo de estudar para & escrever meu TCC, e eu tinha tempo suficiente para fazer minha coisa favorita: continuar estudado (btw, esta é a versão resumida de como eu acabei estudando fandoms). Eu tive a sorte de fazer amigos que me apontaram na direção certa, me mostrando as músicas, vídeos, performances ao vivo, artigos e livros que me ajudaram a estabelecer uma boa base pra começar a visualizar o cenário de idols na Ásia de forma mais ampla, colocando em contexto o produto final que eu gostava tanto de consumir.

Bem no começo de 2020, em uma conversa com uma das amizades mais experientes que eu arranjei, eu ouvi que todo fã em algum momento poderia ser confrontado com a situação de não ter mais tempo (ou energia) para continuar apoiando a carreira de tanta gente ao mesmo tempo, então deveria haver 1 idol com o qual nós estamos dispostas a seguir, deixando os outros para trás. Eu me lembro de dizer que não sabia dizer quem eu escolheria; mas então, não muito tempo depois, um pouco depois do 24º aniversário do Hoshi, eu percebi que ele havia se tornado minha resposta àquele questionamento. Quando eu comecei a gostar de Seventeen, ele não foi um dos primeiros membros a chamar minha atenção, mas, quanto mais eu aprendia sobre o grupo, mais ele me intrigava. A princípio, eu acreditava que havia algo de incomum por trás desse interesse, porque todos os meus idols favoritos até aquele momento tinham algumas características em comum que não eram as coisas mais marcantes sobre ele. Essa percepção me fez pensar bastante sobre o que havia gerado esse interesse. Eu acabei concluindo que minha nova simpatia era o resultado de um processo maior de transição pelo qual eu estava passando, que era resultado dos pensamentos e ideias que eu havia assimilado depois de ter buscado educar minha mente para perceber idols como idols.

This image has an empty alt attribute; its file name is 5r6a0700_2.jpg
Hoshi, em fotos do behind the scenes da gravação do clipe da música que marcou seu debut como artista solo, “Spider”, lançada em Abril deste ano. Em suas próprias palavras, ele é “o menino que vai quando você diz que ele não deve ir // o menino que tenta até o final quando você me diz para não fazer alguma coisa” (trecho da sua música “Horanghae”, não lançada). Foto retirada da plataforma Weverse.

QUAIS OS MOLDES DE UM IDOL?

Ser um idol é, em si, uma performance. Idols são um gênero especial de artista pop, cujas personas são especialmente desenvolvidas para maximizar a chance do estrelato. Tal performance é, de fato, um trabalho artístico – um fato que pode ser facilmente ignorado de acordo com a definição de “arte” do observador. Como é uma performance em tempo integral, o papel dos jovens que dão duro para trazer à tona uma imagem de si que seja digna do título é com frequência ofuscado pelo papel dos agentes e produtores no processo. Trainees em empresas de K-pop gastam toda sua juventude treinando em busca do sonho de receber a chance de debutar em um grupo[1], e depois gastam os anos subsequentes trabalhando para construir relevância e estabilidade, no grupo, e individualmente. A partir do momento em que um novo trainee é aceito em uma agência, e sua jornada começa, o objetivo final é o palco; é o lugar em que todos os elementos do processo se juntam, e eles apresentam a excelência que desenvolveram em música e dança, para mostrar que são dignos do nome, e do apoio de seus fãs. Mas a soberania do palco é apenas um dos aspectos dessa performance.

Idols foram projetados para que se tornassem uma fonte de segurança, além de um objeto de desejo, através dos quais os fãs pudessem viver a fantasia de realizar sonhos, em forma de apoio incondicional. Para alcançar essa fantasia, tornar-se fã de idols é uma experiência como a de adentrar uma realidade alternativa transmidiática, um domínio no qual todas as partes da narrativa eventualmente referenciam e apontam umas para as outras[2], criando a ilusão de um mundo de intimidade entre um idol e seus fãs. Neste mundo, uma estética utópica de juventude coletiva é efetivada; para muito além de desejar seus corpos e seus estilos de vida, fãs são encorajados a se perceber como sendo parte da jornada. Da mesma forma que idols crescem desde seus dias como trainees até que se tornem artistas maduros, todos os seus fãs também irão, em suas próprias existências, crescer, e trabalhar duro em busca das próprias aspirações e sonhos.

Esses processos de crescimento do artista e de seus fãs são percebidos como sendo um só, de acordo com a arquitetura dessa relação parasocial; nesse sentido, a experiência de ser fã de um idol é o trabalho de uma vida[3] – conforme empresas e idols trabalham juntos para trazer as imagens e textos através dos quais o apoio dos fãs será captado, fãs entram na equação não apenas como apoiadores, mas com sua própria performance de fandom. Essa performance é expressa através de práticas diárias, como comprar produtos, votar para premiações, escutar músicas e assistir vídeos, organizar eventos, produzir fanart, apoiar marcas patrocinadoras. Mas, da mesma forma que o palco é o momento em que o idol se apresenta em toda sua majestade, fãs também tem um papel próprio no show, sacudindo seus lightsticks (bastões de luz), cantando coros especiais que acompanham cada música, e apresentando as performances coordenadas com slogans que carregam frases especiais para os artistas.[4] Todo esse sistema de idols é construído sobre esse pacto de vínculo entre idols e fãs; e, nisso, como aponta Joanna Elfving-Hwang (2018), qualquer seja o papel que as partes constituintes devem exercer, a base desse pacto é nunca sair do personagem[5].

Se ser um idol é um processo de produzir uma expressão de si que seja digna do título, o talento mais desejável à um jovem aspirante seria a habilidade de articular uma performance cativante e consistente dentro e fora do palco. Nesse sentido, quando elaborando suas personas, a genialidade de exercer esse papel é saber como usar o que se tem em si para construir uma ponte entre quem eles já são, e quem eles devem ser. Já que todo idol que consegue debutar teve que passar ao menos pelo mesmo processo duro de preparação antes de ter a chance de se apresentar num palco, a carreira duradoura que eles tanto desejam depende muito da sua habilidade de fazer com que outras pessoas se apaixonem pelos sonhos deles, e queiram sonhar junto com eles. É por isso que uma história pessoal impactante é tão importante para dar credibilidade à uma personalidade atraente, como uma bússola que indica a direção da narrativa e dá à performance tons mais realistas, e cronologicamente sustentáveis.

Hoshi aparecendo de surpresa para dançar com fãs esperando na fila do show do Seventeen em Newark, nos EUA. Janeiro, 2020.

HOSHI, O IDOL 

Hoshi, meu idol favorito, é uma força da natureza. Seu nome artístico é uma combinação das palavras “horangi” [호랑이, tigre] and “siseon” [시선, olhar]. Sua persona divertida e falante faz uso abundante de uma estética de fofura barulhenta para mostrar um lado cativante, que é um grande contraponto à postura de tigre feroz que ele assume no palco. Nascido em 1996 como Kwon Soonyoung, ele debutou oficialmente em Maio de 2015, como o dançarino principal entre os 13 garotos do Seventeen, depois de treinar por quatro anos. Por conta do grande número de membros, o grupo é dividido internamente em times de acordo com especialização; existe o Vocal Team, o Hip Hop Team, e o Performance Team, do qual o Hoshi é líder. Ele é reconhecido como um artista apaixonado, um coreógrafo talentoso, e o metrônomo do grupo, obcecado tanto com a sala de ensaios quanto é obcecado pelo palco. Seu amor por trabalhar duro e enfrentar os processos é uma de suas maiores vantagens – sua paixão dá conta de cada um dos degraus da escada que leva do compromisso com a preparação até o lugar sob os holofotes.

Pensando em retrocesso, eu acredito que a habilidade que ele tem de tremer de tanta paixão por tudo que faz, em tudo que faz, tenha me feito começar a gostar tanto de assisti-lo. Conforme eu avançava na minha jornada extensa pelo conteúdo do Seventeen em diversas mídias, ele me contava uma história bem consistente de um artista que trabalhava muito duro, que havia desafiado todas probabilidades para se construir do zero. Quando ele era apenas um garoto com um sonho de se tornar um artista, e um histórico sólido em taekwondo, ele percebeu que suas habilidades físicas eram o suficiente para que ele tivesse uma chance. Seus pais não apoiaram seu sonho, mas ele já tinha em si fome e sede que o levaram a tentar provar que era capaz. Ele começou praticando sozinho, em casa, e foi criando as próprias oportunidades, fundando o próprio clube de dança na escola, e entrando em diversas competições, e saindo de campeão de algumas. Em uma dessas, ele alcançou o desejo de ser recrutado por uma agência. Decidido a não deixar passar a chance que havia recebido, ele construiu para si desde o dia 1 a reputação de ser o trainee que dava mais duro e se entregava mais que todos; essa reputação o tem seguido desde então, e continua sendo reafirmada toda vez que ele dá um passo adiante para se apresentar de novo.

This image has an empty alt attribute; its file name is ep5evh5ucaannno.jpg
O jeito leve e bobo com o qual Hoshi se apresenta diante dos fãs vem para contrabalancear seu performance intensa e feroz nos palcos. Seventeen “Ode to You” Turnê em Seul, foto de Eyes on You. Agosto, 2019.

Quando ele dança, ele é intocável e intrigante; diante das câmeras, é uma figura confortante e confiável, com uma aura acessível que faz com que seus fãs o considerem quase como parte da própria família. Esses lados diferentes dão forma à complexidade do seu “tiger power”, a marca que resume e iconifica o gênio da sua performance de ídolo. Kwon Soonyoung, o jovem, diz que é um introvertido, mas, como artista, dá preferência ao barulhento e cheio de energia e quase insano como um impulsionador, e parece decidido a transformar qualquer pedaço de chão num palco, independente de qual seja o papel que ele deve cumprir. Eu até diria que essas diferenças entre sua performance e aquilo que ele às vezes descreve como seu “verdadeiro eu” tornam o show mais interessante. Ele pode sempre contar com o suporte da credibilidade da sua trajetória, que torna o pacote completo sendo apresentado mais crível, e mais agradável de ver – quase como se nós pudéssemos ver a estrada inteira pela qual ele caminhou toda vez que os holofotes se projetam sobre ele. Há um senso geral de coerência que ele consegue comunicar através de diferentes formas de mídia que é difícil de descrever mas, em última análise, se traduz para mim como um senso de comprometimento e segurança de que ele está tão fascinado pelos próprios sonhos quanto seus fãs estão fascinados por ele.

Essa habilidade de se comunicar de forma coerente ao longo dos anos talvez seja uma das razões pelas quais é tão fácil se apaixonar por ele por seus sonhos, a ponto de desejar muito vê-lo alcançar todos. Isso foi muito evidente durante “Spider”, seu excepcional debut como artista solo, lançada em Abril. O lançamento é um excelente display de tudo que ele construiu desde que decidiu que queria estar em um palco; a canção sutilmente voluptuosa foi escrita e produzida pelo seu amigo de longa data e companheiro de banda, Woozi, e permitiu que ele se mostrasse como um artista completo além do Seventeen, destacando seus movimentos pungentes, sua voz encantadora, e seus ângulos e formas belos e viciantes. A canção é fácil de ouvir e implora pelo replay, e tanto o clipe oficial quanto as múltiplas performances, incluindo o dance practice, são um banquete visual, conforme ele se movimenta entre os bailarinos e bailarinas e os caixilhos que constituem a performance. Seus altíssimos padrões de qualidade estão presentes em cada aspecto, desde a concepção, como ele mesmo descreve nas entrevistas e no registro do processo lançado no canal do Seventeen. Não é muito diferente do Hoshi, membro do grupo e líder do Performance team, mas é um pouco maior, e vai além, como a sensação de que você tem que andar mais alguns passos para ter uma visão melhor do todo.

Se você é meu amigo, eu provavelmente te obriguei a assistir isso aqui pelo menos uma vez.

A TRANSIÇÃO

Gosto é um assunto difícil de navegar, porque existem múltiplas camadas coletivas e individuais, externas e internas, por trás do que nos enviesa e nos vincula às coisas; existem diversos aspectos da subjetividades que são inexprimíveis, mas que são como peneiras e filtros que definem com nós digerimos tudo aquilo que ingerimos. Mais difícil ainda quando consideramos nos diversos tipos de discursos de fã que existem, não apenas por causa das qualidades emocionais que fazem parte, mas também o aspecto comunitário que caracteriza a percepção geral de ser fã como ser parte de uma ideia de um arranjo extenso de pessoas que compartilham o mesmo gosto, o mesmo viés, o mesmo vínculo. É discutível até que ponto o gosto de um fã deve ser analisado, principalmente porque, conforme o tempo passa, se torna cada vez mais difícil diferenciar a identidade e a reação pessoal do indivíduo das construções coletivas de discurso com as quais o fã pode entrar em contato. Por isso, desde o começo, eu deixei claro que este era um relato pessoal, porque, no fim das contas, aquilo que me enverga diz respeito à mim.

Mesmo assim, mesmo que o processo de me tornar uma grande fã do Hoshi tenha sido um processo individual, pessoal e subjetivo, existe um processo mais amplo em questão – que é a coisa que eu estou chamando de uma transição ocasionada pela minha experiência de adquirir conhecimento – que foi o processo de me tornar mais fã de um dançarino que de outros. Isso pode soar estupidamente simples, e provavelmente indigno de um texto tão longo assim, mas a verdade é que na verdade é bem duro desconstruir percepções de uma vida toda sobre o valor das muitas mídias através das quais a expressão pessoal se articula. Na faculdade de Arquitetura, minha melhor vantagem era a capacidade de traduzir imagens e espacialidades em palavras, e vice-versa. Mesmo como professora de Inglês, minhas habilidades devem muito ao meu talento de pensar demais sobre como usamos a língua para expressão. A coisa que eu sempre mais admirei foi a capacidade de usar bem as palavras – o tipo de percepção que eu cultivei enquanto crescia sendo fã de coisas, e que carreguei comigo quando virei fã de idols.

A princípio, todos os meus idols favoritos eram os compositores, aqueles que carregavam em si uma poética que era articulada verbalmente, alguns que até haviam lançado livros. Mesmo que eu fosse tão fissurada pelo pacote completo do show, no frigir dos ovos, eu ainda atribuía mais valor subconscientemente àqueles que conseguiam se expressar com palavras. O processo de me aprofundar nos conteúdos não-verbais do K-pop, e entender como cada aspecto adicionava valor ao produto final, me fez mais capaz de apreciar as várias camadas do espetáculo como sendo igualmente importantes; a essência daquilo que eu chamei de perceber idols como idols seria um consenso geral de disposição a ver cada um pelo papel que desempenha em pé de igualdade – desde aqueles que escrevem canções e cantam a maior parte delas àqueles que deixam o grupo mais bonito mas não necessariamente tomam a frente de performances. Uma das razões pelas quais idol groups tem uma diversidade de visuais, personalidades, talentos e tipos é justamente para maximizar o seu apelo; quanto mais amplo o espectro de apelo, maiores as chances de que alguma história toque o coração de alguma pessoa que está assistindo – porque, no fim das contas, o que está sendo comunicado ainda depende em grande medida da habilidade da outra parte de entender.

Uma fancam do Hoshi dançando ao mega hit do Seventeen em 2016 VERY NICE. Outrora os inimigos de Estado #1 do Twitter, fancams foram uma das coisas que eu demorei a entender quando virei fã de K-pop, mas que se tornaram parte constituinte da minha jornada quanto mais eu aprendi a apreciar dançarinos e performance. Julho, 2016.

Uma vez que eu havia me colocado à disposição para celebrar as várias facetas de como idols se articulavam, eu pude colocar minha admiração de longa-data pela habilidade de construir uma narrativa artística coerente à serviço de apreciar a performance de idols de forma mais inteira, o que eventualmente se desenvolveu na direção do Hoshi, o idol e artista. Tornar-me sua fã foi como descobrir o quanto eu desejava encontrar novos pontos de contato no tecido da realidade em que a sensibilidade do meu corpo e da minha alma pudessem se encontrar com as ordens superiores do cosmos – a janela de possibilidade que nos leva ao numinoso, se tivermos sorte. É tão simples quanto uma profunda ânsia por beleza. Existem incontáveis camadas coletivas e individuais, externas e internas, por trás do que nos enviesa e nos vincula às coisas, conforme nós abrimos caminho pela mata virgem que é viver e existir no mundo, e as únicas constantes são de que o tempo vai continuar passando, e que vamos continuar mudando ao longo do caminho. É aí que a performance de um idol em cima de um palco te leva de volta à estrada que ele trilhou para chegar até ali, a interseção entre se apaixonar por assistir, se apaixonar por sonhar, e transformar essa paixão em uma prática. É daí que nasce um fã.

Mesmo assim, a despeito das minhas palavras emocionadas, em última análise, a relação artista-fãs não deixa de ser uma transação financeira. A razão pela estrutura emocional complexa que sustenta o pacto de vínculo entre idols e seus fãs é a necessidade de uma estrutura resistente de apoio que viabilize o emprego de todas as partes envolvidas na montagem do show. E o que fãs tiram disso? São muitas as razões pelas quais nós damos espaço para que nossos sentimentos e percepções virem uma moeda nessa troca do que oferecemos aos artistas dos quais gostamos e que decidimos apoiar. Talvez eu também anseie pelo sentimento de seguir vida juntos à distância, como linhas paralelas nesse mundo imenso, caminhando em direção ao lugar para onde vão as almas. Eu tenho certeza que isso soa emotivo e otimista demais, mas talvez seja só minha mente pândemica, cansada demais, necessitando de distração com mais frequência que o normal, e falando mais alto que meu bom senso, mas eu já li que a beleza do mundo é realmente como a boca de um labirinto. O fato é que eu amo escrever sobre minhas coisas favoritas, porque elas sempre me ajudam a pensar sobre mim mesma. E eu amo escrever sobre o Hoshi também, mas eu gosto de assisti-lo ainda mais. Como café forte e amargo, toda vez que ele aparece, deixa pra trás um sabor que perdura na ponta da língua, que me dá energia extra pelas manhãs, ou me mantém acordada à noite quando é necessário. E esta é minha opinião orgulhosamente, totalmente, completamente, apaixonadamente tendenciosa sobre o que faz dele um grande idol.

A dona aranha subiu pela parede
Veio a chuva forte e a derrubou
Já passou a chuva o sol já vai surgindo
E a dona aranha continua a subir
Ela é teimosa e desobediente
Sobe, sobe, sobe e nunca está contente



OUTRAS LEITURAS (em Inglês)

Filmi Girl. “Why an Idol Group isn’t a Boy Band.” The Idol Cast and Other Writings. Mar 4, 2021.

Musikosmos. In the Spider’s Web.” Musikal Kosmos. Mar 29, 2021.

Sara Delgado. SEVENTEEN’s HOSHI Talks First Solo Mixtape “Spider”.” TEEN VOGUE. Apr 2, 2021.

[INSIDE SEVENTEEN] HOSHI Mixtape ‘Spider’ Behind. SEVENTEEN Official Youtube Channel. 14:07. Apr 12, 2021.



NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Muitos idols que começam a treinar muito jovens e/ou debutam na adolescência podem interromper os estudos devido às demandas do treinar/se apresentar. (Saeji et al. 2018: 12)

[2] Em “Idols: The Image of Desire in Japanese Consumer Capitalism”, Galbraith (2012: 186) descreve isso usando o termo “intertextualidade inescapável” [tradução livre]: 

“Constantly present and exposed, the idol becomes “real,” the basis of feelings of intimacy among viewers, though this is independent of “reality.” John Fiske (1987, 116) describes the situation as “inescapable intertextuality,” where all texts refer to one another and not to any external reality. This is not to say that reality does not exist, but rather that what is accessible in cultural products is a construction of reality, which must be understood on its own terms. “Images are made and read in relation to other images and the real is read as an image” (Ibid., 117). The meanings of images, however temporary, are made (or negotiated) in interaction with images.”

[3] Para mais a respeito disso, eu recomendo especificamente “Always Fans of Something: Fandom and Concealment of Taste in the Daily Lives of Young Koreans” de Lee Eungchel (2021). Agradeço muito à Profa. Dra. CedarBough T. Saeji que compartilhou um link para este artigo, que me inspirou a escrever este texto.

[4] Sobre práticas de fãs, existe um espaço especial no meu coração para a densíssima auto etnografia “K- Popping: Korean Women, K-Pop, and Fandom” (Kim, 2016) 

[5] Demonstrar consistência entre diversos meios de comunicação com fãs, com a mídia e outros espectadores é um aspecto chave na formação do vínculo duradouro com fãs, assim como a apresentação de uma imagem confiável e digna como celebridade perante a sociedade. (Elfving-Hwang 2018)

REFERÊNCIAS

Elfving-Hwang, Joanna. (2018) “K-Pop Idols, Artificial Beauty and Affective Fan Relationships in South Korea.” In Routledge Handbook of Celebrity Studies, edited by Anthony Elliott: 190-201. New York: Routledge. Retrieved from: https://www.academia.edu/36343905/K_pop_Idols_Artificial_Beauty_and_Affective_Fan_Relationships_in_South_Korea 

Galbraith, Patrick W. (2016) “The Labor of Love: On the Convergence of Fan and Corporate Interests in Contemporary Idol Culture in Japan”. In Media Convergence in Japan, edited by Patrick W. Galbraith and Jason G. Karlin: 232-64. Tokyo: Kinema Club. Retrieved from: https://www.academia.edu/25849863/The_Labor_of_Love_On_the_Convergence_of_Fan_and_Corporate_Interests_in_Contemporary_Idol_Culture_in_Japan 

Kim, J. (2017). K- Popping: Korean Women, K-Pop, and Fandom. UC Riverside. Retrieved from https://escholarship.org/uc/item/5pj4n52q

Lee,  Eungchel (2021). “Always Fans of Something: Fandom and Concealment of Taste in the Daily Lives of Young Koreans.” In Korean Anthropology Review 5: 53-78. Retrieved from: https://s-space.snu.ac.kr/handle/10371/174377 

Saeji et al. (2018) “Regulating the Idol: The Life and Death of a South Korean Popular Music Star.” In Asia Pacific Journal: Japan Focus 16 (13:3): 1-32. Retrieved from: https://apjjf.org/2018/13/Saeji.html 

Minhas Histórias de Amor, segundo Taylor Swift

For the English version, click here.

Dedicado à minha melhor amiga swift de longa-data e xará, Luíza.

alerta de gatilho // menções de distúrbios alimentares

Eu sou uma professora de Inglês com um diploma de Arquitetura e Urbanismo, mas, nas horas vagas, eu estudo fandoms. Eu me identifico como fã de coisas desde muito jovem; por isso, eu levo a alcunha de “fã” muito a sério. Então, no sentido mais estrito da palavra, eu não sou uma fã da Taylor Swift. Eu sou, no entanto, uma jovem senhora de 26 anos que cresceu com as músicas dela no plano de fundo dos meus anos de adolescência. Aos 14 anos, eu assistia o clipe de “You Belong With Me” quase todos os dias no TVZ, o suficiente para saber a letra de cor, e recorrer à essa música quando o menino de quem eu gostava no primeiro ano do Ensino Médio começou a namorar minha amiga mais bonita. 

vamos começar bem

Eu  achava interessante como, no clipe, Taylor lutava  pelo rapaz que amava contra uma versão morena dela mesma. Quando eu tinha cerca de 6 anos de idade, estava no ar a novela “O Cravo e a Rosa”, inspirada na história de “A Megera Domada”, de Shakespeare. Meu cabelinho chanel, minha língua grande e minha irmãzinha caçula de cabelo loiro cacheado me renderam o apelido de Catarina por muitos anos, que eu passei a detestar depois que li a peça no Ensino Fundamental. Eu sonhava em renascer como uma Bianca, doce e amável — alguém como a Taylor, a garota mais bonita que eu já havia visto na altura dos meus 14 anos. Na minha cabeça, ela era alguém com quem eu nunca poderia me comparar; mas, nos quatro minutinhos daquela música, enquanto ela cantava sobre ser uma perdedora, mas ser aquela que realmente entendia o rapaz, eu conseguia acreditar que nós podíamos ser tão parecidas, quase as mesmas.

Minha irmã e eu, aos 3 e 6 anos de idade. Fico feliz em comunicar que não me importo mais de ser associada à Catarina (e que permanecerei uma megera indomada) (c. 2001)

Infelizmente para mim, eu cantei essa música para dois rapazes consecutivos no Ensino Médio; assim como o primeiro nunca acordou e percebeu que “o que ele estava procurando havia estado ali o tempo todo” (eu), o segundo também não. Naquela época, parecia o fim do mundo, mas era bem o princípio das dores. O último ano do Ensino Médio foi complicado; depois da rejeição do primeiro rapaz, eu passei a acreditar que, se eu fosse tão magra quanto minha amiga bonita, talvez ele tivesse me escolhido. Depois de um ano lutando contra medidas drásticas, no meu aniversário de 16 eu decidi parar de comer. Essa decisão, que me assombraria pelos dez anos seguintes, não mudou minhas circunstâncias naquele momento: o segundo rapaz passou um ano me enrolando, enquanto ia e voltava com uma menina da nossa sala, e eu escutei “You Belong With Me” sem parar mais uma vez. Mas daí, quando veio nosso baile de formatura, meus colegas de turma me consideraram a menina mais bonita da festa — um tipo de elogio que alguém que foi rejeitada na frente de todo mundo por um ano não espera receber. Dali em diante, eu passei a acreditar que minha beleza, e meu valor, dependiam da minha magreza.

Uma foto minha em 2012, o ano em que entrei na faculdade, aos 17. Tirada com a webcam do meu laptop em algum ponto entre Abril e Agosto.

Eu comecei a faculdade na semana em que fiz 17, muito jovem, magra e orgulhosa. Minha arrogância quase me fez cair numa armadilha — um dos meus veteranos, que tinha 25 anos na época, se aproximou de mim. Ele era um leitor ávido de tudo que eu gostava, apreciador de música e cozinha italiana, tinha um estilo vintage, e fazia eu me sentir importante, vista, e muito madura. Olhando de fora, parecia um cenário ideal para um desastre, mas ele levou poucas semanas para passar de um sonho estético para o cara mais chato que eu já tinha lidado. Eu havia acabado de desperdiçar meus três anos de Ensino Médio sofrendo por caras que não valiam tudo aquilo, e não queria repetir o mesmo erro de novo (não tão cedo assim). Ele protestou, mas eu mesma decidi que era melhor que nós nos afastássemos. Cerca de um mês depois, enquanto ele ainda estava postando no Facebook sobre sentir muito a falta de “alguém”, a incrível “We Are Never Ever Getting Back Together” foi lançada. Escutei essa música sem parar por meses, dançando com a alegria de quem sabia que havia acabado de se livrar de uma bomba. 

Culpada de zero capacidade de autocrítica.

A sensatez que eu demonstrei com meu veterano não deu as caras de novo por alguns anos. Em algum ponto do fim de 2012, eu twittei “Taylor Swift tem o coração quebrado umas cinco vezes por mês”, um comentário corajoso partindo de alguém que se encaixava na mesma estatística. Na mesma época, poucas semanas depois desse tweet, no dia depois do Natal, eu me apaixonei pelo moço que me vendeu um livro sobre o Renascimento em uma livraria, e eu levei quase cinco anos para superá-lo completamente. Nós tínhamos a mesma banda favorita, ele amava minha série de livros preferida, e fazíamos aniversário com dois dias de diferença. Ele tinha uma obsessão juvenil mal resolvida com James Bond, assim como eu tinha com o Batman. Os meses que nós passamos juntos me deram algumas das memórias mais bonitas que eu tenho — essas coisinhas que valem a pena guardar conforme o tempo passa, e o passado fica mais nublado. Quando ele me largou pra ficar com outra pessoa, eu passei uma noite em claro chorando, sentindo uma tristeza que me acompanhou por muito tempo, mesmo quando eu fui escutar “Red” pela primeira vez, alguns meses depois. Eu me lembro que cliquei na música por causa do título, por causa da cor — eu queria saber qual era o som da minha cor favorita. Soava como eu me sentia — “but moving on from him is impossible // when I still see it all in my head // in burning red”. Era uma sexta-feira, e eu me lembro de escutar sem parar aquela música, e aquele álbum, naquele fim de semana, um dos muitos que eu passei terminando trabalhos na sala de projetos 24h da Arquitetura. 

O moço da livraria me deu essa flor da Arlequina quando fomos ao cinema juntos assistir ópera. Eu despedacei em meio à lágrimas quando ele me largou (Abr 2013).

A repetição não foi suficiente para que eu aprendesse algumas coisas importantes; em Setembro de 2013, eu fiz um tweet sobre pessoas que faziam tocar “I knew you were trouble” em loop na minha cabeça, quase como um radar, quando estavam por perto. Se eu tivesse dado ouvidos, teria evitado mais quase um ano de desgaste emocional. Eu ainda estava triste, mas, do meu lugar de tristeza, fiquei fascinada por um amigo dos meus amigos. De longe, tudo sobre ele parecia arriscado demais, mas eu ignorei os sinais, porque estava atraída por correr aquele risco. Eu não me lembro exatamente de como acabamos nos aproximando, mas ele me fazia querer escrever sobre ele, e eu comecei a publicar poemas no meu blog. Ele às vezes lembrava muito um personagem de filme, e me dava espaço para agir como uma também; nós compartilhávamos músicas o dia todo, eu fazia poemas sobre nossas conversas, deixava recadinhos escondidos por onde ele passava para ir pra casa, e eu trouxe de uma viagem uma estátua de leãozinho de presente, por causa do cabelo cacheado que ele tinha. Ele me deu um beijo uma vez, e eu levei quase meio ano pra descobrir que ele tinha alguém o tempo todo — “he was long gone when he met me”. Ele curtiu o post do poema de despedida que eu escrevi, e eu fiquei feliz em saber que ele sabia exatamente o quanto eu desprezava a forma como ele havia brincado comigo.

Acho que minha carência me impediu de entender que eu não deveria fazer tanto por outra pessoa como fiz por ele, mas eu realmente queria muito receber amor de volta. A decepção que veio em seguida acabou sendo a mais difícil, porque daquela vez eu acabei alcançando meu objetivo, e nós ficamos juntos por algum tempo. Esse moço não estava particularmente interessado em mim desde o começo, mas ele também gostava da minha atenção. Nós tínhamos a mesma idade, mas ele era calouro dos meus calouros na faculdade, e nos aproximamos falando de fé e música. Eu também lhe escrevi alguns poemas, e comprei vários livros de presente, que ele nunca leu. A primeira vez em que nós terminamos foi alguns meses depois que “Shake it Off” foi lançada; eu chorei muito, e dancei ainda mais, para sacudi-lo para fora de mim — “Heartbreakers gonna break, break, break, break, break”… Mas não adiantou muita coisa, porque nós voltamos, e foi quase um ano indo e voltando até que ele decidiu que gostava um pouco de mim. Eu achava que ele era tão precioso, e que todo o trabalho duro que eu estava fazendo para que ele se apaixonasse por mim valia a pena. Nas muitas playlists que eu fiz, sempre colocava “Mine” da Taylor, ocasionalmente na voz da Naya Rivera  — “you are the best thing that’s ever been mine”. Pela primeira vez, eu realmente achava que queria me casar com alguém, mas antes nós teríamos que sobreviver ao ano em que eu ia passar estudando na Inglaterra… Mas isso não aconteceu. 

Uma foto de uma viagem pra São Paulo em Dez, 2014, na qual eu planejava esquecer o cara que eu acabei namorando algumas semanas depois. Minha melhor amiga swiftie comentou que eu tinha a energia da Taylor Swift “Red” tour (não tinha) (Dez 2014).

Estar longe dele me fez perceber o quanto eu havia me cansado de trabalhar pra ser amada, e esse sentimento foi me afastando dele, até que terminamos via FaceTime. Eu nem consegui ficar triste; eu me sentia livre. Tentar me tornar a garota que ele queria, que tinha a aparência, as roupas e o comportamento que ele achava desejáveis, havia me apagado inteira, mas agora eu estava no meu país dos sonhos, e tinha tempo pra me reencontrar. Meu intercâmbio foi um ano incrível. Eu era vizinha do estádio do Leicester City, e, naquele ano, nós tínhamos incontáveis placas escritas “Fearless” espalhadas pela cidade, porque aquela foi a temporada em que os “Fearless Foxes” venceram a liga. A associação me fez revisitar “Fearless” incontáveis vezes, e acabei relacionando a música ao líder de louvor bonitinho que me impedia de me concentrar em Jesus nos cultos da minha igreja no Reino Unido. Ele me dava carona toda semana depois dos nossos pequenos grupos, e nós nos divertíamos muito — “In this moment now, capture it, remember it”. Ele era legal e gentil, e às vezes parecia que ele estava tão distraído por mim quanto eu estava por ele, mas as circunstâncias mostraram que não íamos virar nada. Eu fiquei entristecida por um tempo, e ainda estava triste quando voltei pro Brasil, mas a dor passou rápido, e eu guardei mais coisas boas que ruins. Eu achava que me apaixonar na Inglaterra seria muito bonito, mas hoje eu vejo que ele estava certo em não deixar que fosse outra coisa. Por sorte, eu guardei um bom amigo.

Eu acho que postei cerca de uma dúzia de snaps cantando “Fearless” filmando essa placa ao longo da temporada (Maio 2016)

De volta ao meu país, eu sentia que havia chegado a um certo limite de tentativas fracassadas, e estava pronta para uma longa temporada sozinha. Não parece que foi há tanto tempo assim, mas eu só tinha 21, o que é razoavelmente menos que 26. Nem preciso dizer que não cumpri minha promessa — eu já estava apaixonada (e triste) de novo quando fiz 22. Mas dessa vez, eu juro que realmente parecia que as coisas seriam diferentes; mesmo tendo terminado mal de novo (spoiler!), hoje eu vejo que a sensação que eu tive foi só uma consequência do ar de seriedade que tudo na vida começa a ganhar quanto mais adulto você se torna. Ele era de longe a pessoa mais interessante que eu já havia conhecido, e nós nos identificamos intelectualmente de uma forma que eu sempre havia desejado me identificar com alguém. Nos tornamos ótimos amigos, e eu recebi sinais confusos o suficiente para gravitar por quase dois anos ao redor dele. Na minha cabeça, ele era um Superman de verdade, como aquele sobre quem a Taylor canta — sempre voando, fazendo algo para salvar o mundo, enquanto eu estava em casa, terminando minha graduação e descobrindo o que faria depois — “I’ll be right here on the ground // when you come back down”. Isso foi em 2017, o ano em que as músicas dela voltaram para o Spotify, em Agosto; “Superman” apareceu na minha lista de mais tocadas do ano, assim como “Sparks Fly”, que conseguiu o 2º lugar. “Red” também estava lá. 

Entender que eu precisava seguir em frente aqui foi muito difícil, porque eu alimentava uma esperança torta de que eu deveria ficar por perto, porque valia a pena esperar por ele — “I’m captivated by you baby // like a fireworks show”. Eu já havia sido rejeitada muitas vezes àquela altura, mas reconhecer que não seria diferente dessa vez demandou muito, porque eu acreditava que aquela era a melhor versão de mim, oferecendo tudo que eu tinha de melhor, para alguém que me parecia ser a melhor pessoa que eu poderia conhecer — e eu não fui suficiente. Mesmo tendo deixado ele pra trás há alguns anos, eu ainda estou me livrando dos resquícios dessa frustração específica. No meio do processo de entender que era hora de sair daquela situação, o moço da livraria, que nunca havia saído totalmente do fundinho da minha cabeça, entrou em contato comigo, querendo se desculpar por ter me largado sem muitas explicações há cinco anos. Lembrar desse momento ainda parece um delírio da minha lembrança, mas me ajudou a colocar todo apego que eu ainda tinha às nossas memórias bonitas no lugar certo, e me incentivou a dar passos para colocar um fim em coisas que não precisavam se arrastar. Enviei um email ao Superman algumas semanas depois, no dia exato em que completavam dois anos que havíamos nos conhecido, abrindo meu coração e me despedindo de vez. E então, meu coração ficou vazio de amores, e eu fiquei sozinha comigo mesma (e meu diploma).

Queria poder dizer que o ano seguinte foi como “I Forgot That You Existed”, mas não foi — foi bem ruim, de várias formas. Eu havia ganhado muito peso no ano anterior, por causa do estresse do meu TCC, e os pensamentos que me assombravam desde os 16 voltaram com força, e eu me sentia muito indigna de amor. Minha confiança estava em um ponto baixíssimo, mas, mesmo como recém-formada, triste e confusa, eu achei oportunidades de me divertir. Eu acompanhei o lançamento de “ME!” de perto, não só como fã de Panic! De muitos anos, mas porque queria ver se o clipe bateria o número de views nas primeiras 24 horas do clipe de “Boy with Luv” do BTS, que havia saído exatamente duas semanas antes. Foi nesse ponto baixo que eu comecei a estudar fandoms, e no fim daquele ano eu voltei pro Reino Unido pela primeira vez desde 2016 para apresentar minha pesquisa em uma conferência. Eu não reencontrei o líder de louvor que me distraía quatro anos antes, mas encontrei meu casal de melhores amigos, queridas amigas da internet, e alguns amigos da faculdade. Um deles era um jovem Arquiteto lindo e genial por quem eu tive uma queda platônica durante o intercâmbio. Dois dias antes de retornar para o seu país para as férias de verão, ele me disse que tinha um queda por mim também. Eu pensei nele várias vezes ao longo dos anos, imaginando se algo teria sido diferente se nós tivéssemos confessado um pouco antes. Encontrá-lo de novo foi doce. Nós tomamos um negocinho e conversamos sobre a vida juntos antes que eu voltasse para o Brasil de novo. Na época, a Taylor ainda não havia lançado “folklore”, mas quando lançou, eu ainda tinha a nossa conversa boba e despretensiosa passeando pela minha mente, a coisa na qual eu mais pensei quando ouvi “the 1” — “if one thing had been different // would everything be different today?”. Ele está em um relacionamento agora, e eu desejo pra ele tudo de melhor, porque ele é o melhor moço que eu conheço; poder ficar feliz por ele sempre faz eu me sentir melhor sobre o resto. 

Meu coverzinho bobo de “the 1”. Eu não sou boa nisso, mas gosto de fazer mesmo assim.

Desde então, ninguém mais esteve no meu coração. Queria ter contado uma história com um final mais feliz, mas o melhor que eu tenho é isso. Mas eu espero que você não tenha me entendido errado — eu não me vejo como uma vítima da vida. Eu tive algum azar, mas, no final das contas, sou apenas uma pessoa que demorou demais pra entender que realmente poderia fazer coisas melhores na vida além de namorar os moços por quem ela foi obcecada em diferentes temporadas. Acredite se quiser, isso não é nem metade das minhas histórias; além de todos os detalhes que eu preferi omitir, ainda tenho mais moços, que causaram mais drama, um ou dois que valeram a pena, e um ou dois com quem fui eu quem errei muito, mas cuja trilha sonora não eram músicas da Taylor — talvez eu tenha que escrever outro texto, contando tudo da perspectiva de “Electra Heart”. Eu entendo que o valor de acumular tantas histórias assim é questionável, mas eu estaria mentindo se dissesse que não gosto de recontar as coisas imbecis que eu fiz, como uma terceira pessoa que se entretém observando um personagem fazendo escolhas ruins, desejando poder intervir e contar o que acontece depois. Talvez seja a melhor forma que eu encontrei para lidar. 

Mas eu acho que as coisas pelas quais eu passei fazem com que eu me sinta feliz pela Taylor, e não só porque ela teve êxito construindo um império de cada vez em que seu coração foi partido: testemunhar suas histórias com amigos e amantes contadas pela mídia, enquanto eu mesma navegava meus próprios desafios, faz com que eu sinta alguma coisa queimando quando ela canta “hell was the journey, but it brought me heaven”. Ela tinha 30 quando lançou isso; eu tinha 25 quando ouvi pela primeira vez, a idade na qual eu sempre desejei me casar. Como uma solteira de 26 anos, às vezes eu sinto o peso da passagem dos meus 20, e do desafio de repensar o que significava ser jovem e cheia de esperança aos 18, e o que isso significa agora. Não são muitos anos, mas são muitas mudanças, mas eu entendo que a melhor percepção das coisas só se torna discernível conforme o tempo passa. Toda vez que eu relembro das minhas histórias de amor, e me surpreendo de novo com minha estupidez, eu reconheço que a poucas pessoas é concedido o dom de tirar um final feliz do meio da própria tolice. Por outro lado, fico feliz que nenhum desses homens por quem eu sofri se tornou mais que um ponto em uma página na minha história, porque a chave de tudo é entender que eu estava correndo atrás de quem não pertencia a mim. Aliás, um deles acabou se casando com a garota por quem ele me trocou, e eles acabaram de se tornar pais. Talvez eu também devesse mandar um presente para o bebê dele. 

5 de Janeiro de 2020.

A foto abaixo (tirada pela minha irmã) fez um ano hoje. Ela documenta uma experiência muito inusitada e quase surreal que eu vivi em Janeiro do ano passado, quando fui pra Inglaterra pela primeira vez desde 2016 pra apresentar uma pesquisa sobre como o fandom de BTS ocupava o Twitter, na Kingston University. Experiência sobre a qual eu, autointitulada “contadora de histórias por vocação divina”, nunca escrevi. Por falta de saco, por falta de tempo, por falta daquelas palavras que a gente só encontra depois que pensa o suficiente sobre um acontecimento. Mas hoje, 5 de Janeiro de 2021, parece que é finalmente um bom momento pra falar a respeito dela.

Eu sou Arquiteta apenas de formação, não de ocupação. Eu pago minhas contas com aulas de Inglês, a língua que eu domino o suficiente pra que a usasse para apresentar minha pesquisa independente diante de uma pequena plateia de gente que eu respeito muito de alguns países diferentes. A mesma língua cujo domínio me permitiu viver na Inglaterra por 11 meses entre 2015 e 2016, uma experiência que, em larga escala, definiu minha vida, mas, em pequena escala, tornou a viagem do ano passado mais especial, pelos sabores inconfundíveis do reencontro.

Comecei a dar aulas de Inglês em Abril de 2019, mas me comprometi de verdade com o trabalho apenas em Outubro, por conta da viagem, também, pois ela foi razoavelmente inesperada e eu precisava banca-la. Ainda bem que, em Fevereiro de 2007, meus pais conseguiram negociar um preço bacana pra que eu começasse a estudar na Cultura Inglesa de Uberlândia. Na época, eu tinha 12 anos incompletos, e, como a criança que eu era, achava que já estava “muito tarde” pra que eu finalmente realizasse o sonho de começar a aprender inglês (que inocência a minha). Nessa escola, eu conheci professores que me ensinaram a amar aprender a me expressar em uma língua diferente. Fiquei lá até o fim de 2012, quando completei meu curso CAE.

De volta a Outubro de 2019, admito que a falta de um diploma em Letras me fazia ter reservas quanto à começar a dar aulas; mas, naquele período especificamente, eu estava um pouco mais confiante que em anos anteriores, e a janela da oportunidade me parecia grande o bastante para que eu pulasse por ela. Estudando Coreano desde o começo do ano, eu havia constatado que minha mente muito analítica – afiada pela formação de Arquiteta, e combinada com minhas experiências estudando a Língua Inglesa e a Língua Alemã – tinha me ensinado a sistematizar as línguas de uma forma muito conveniente. Eu era capaz de me aprofundar nas suas estruturas, fundamentos e oportunidades de expressão usando minhas estratégias de análise de projeto, compreendendo e desconstruindo as duras e assustadoras regras, e fazendo com que meus alunos adultos finalmente entendessem como usar o “don’t” e o “doesn’t”, e como pronunciar “cycle” sem perder o sabor do L depois do C.

Essa pronúncia do L, por si só, me é muito cara – custou muitas horas de exercícios para que ensinasse minha língua presa a se mover da forma certa. Nessa mesma época, o distante ano de 2009, eu ainda estudava alemão, e alternava os esforços em L com os esforços em contornar meu freio para pronunciar os R’s em “Wir sterben niemals aus”, minha música favorita da banda que me motivou a estudar. Domar a minha língua para que se movesse de forma a reproduzir os sons que ela era naturalmente incapaz de fazer foi fundamental para que eu desenvolvesse a capacidade de reproduzir qualquer som que eu ouvisse. Essa habilidade inesperada me ajudou quando comecei a estudar canto, participou do desenvolvimento do meu sotaque que me faz soar como uma Americana que ficou tempo demais no Reino Unido, além, claro, de me ajudar no desenvolvimento da fluência e da desenvoltura com a qual eu conseguia falar uma língua que não era a minha – incluindo meu desafio mais novo, que é aprender Coreano o suficiente pra pensar numa pós-graduação na Coreia do Sul no futuro próximo.

Assim como eu estudei Alemão por causa de Tokio Hotel e Cinema Bizarre, a verdade é que comecei a estudar Coreano, sim, por causa dos meus artistas favoritos da Coreia do Sul. Eu conheci todos mais ou menos na mesma época, mas aqueles são parte da minha adolescência, enquanto estes são da minha fase adulta. Eu, adolescente, sonhava em ser designer, e estudar na Bauhaus; eu realizei o sonho de visitar o prédio da escola em 2016, durante meu intercâmbio, um dia antes do meu aniversário de 21 anos. Andando por aqueles corredores, eu tive a convicção de que os sonhos da Luisa de 14 anos, que haviam me carregado até aquele local, morriam ali mesmo. A Alemanha era, na verdade, o destino original que eu tinha em mente quando me inscrevi no programa de bolsas. Cá entre nós, eu fui para o Reino Unido a contragosto – eu sequer queria ir pra Leicester (a cidade onde conheci meus melhores amigos, que também reencontrei em Janeiro do ano passado).

Eu ainda não encontrei uma nova visão de futuro que me carregue como antes, mas eu tenho novos pequenos planos pelos quais consigo trabalhar e, com a Graça de Deus, alcançar, se for conveniente, como viajar para o Reino Unido para apresentar uma pesquisa que foi fruto de me permitir ser fã mesmo depois de crescida, de algo que eu havia rejeitado dez anos antes, quando era adolescente. Uma pesquisa que não teria nascido se eu não tivesse me formado no que me formei, se não conhecesse as coisas que conheço, se não dominasse as línguas que domino, se não tivesse passado por cada um dos minutos das horas dos dias das semanas dos meses dos anos que me levaram até o momento em que essa foto foi tirada, há 366 dias.

Em 31 de Dezembro de 2017, vivendo um inferno familiar, eu fui dormir com um cinto enrolado em uma das mãos, escondido embaixo do meu travesseiro, com a promessa de que eu acabaria com a minha vida se acordasse sentindo a mesma dor que eu sentia naquele momento. Entre eu, meus pensamentos e Deus, foi o dia mais difícil que eu já vivi. Eu gostaria de dizer que toda aquela dor já passou, mas meu coração ainda dói muito, e voz que me diz pra desistir ainda sopra no fundinho do meu ouvido. A vida é dolorida, de viver, de ver, de ouvir falar, mas a minha mente muito analítica – afiada pela formação de Arquiteta, e combinada com minhas experiências chorando de dor de tanto pensar em tudo que acontece nesse mundo – me ensinou a sistematizar a vida de uma forma que me ajuda a aguentar firme, um dia de cada vez.

Estou próxima de completar 26 anos. Eu vivi uma porção de outras coisas na minha vida além das que eu relatei aqui agora. Muitas perdas e derrotas, muitas frustrações, coisas faltando, dias estagnados, tantos momentos que eu já esqueci e que nem sei dizer se foram mais ou menos importantes pra criar quem eu sou hoje, e muitas, muitas pessoas que eu encontrei ao longo do caminho, que me ajudam a lembrar que eu não sou a personagem principal da história da humanidade, mas que eu ocupo sim um lugarzinho, um minúsculo papel que quero desempenhar com honra e gratidão ao Arquiteto do Universo, que me concedeu o fôlego que me faz estar aqui, hoje.

Não se engane, crer que existe um propósito em tudo vai muito além de racionalizar as voltas que a vida dá, pra olhar com Graça pros casos e acasos. Não é romantizar nem negar a dor, mas acreditar que, por trás das curvas e ângulos da geometria da existência, existe algo maior que minha própria vida (que é tão frágil, tão pequena, e pode acabar amanhã, ou agora mesmo). Acreditar que existe um Arquiteto infinitamente Bom, cuja mente analítica é impregnada de Amor, e que produz pensamentos muitos mais altos que os meus – não um Deus do caos, mas um Criador que cuida das suas criaturas, que as acolhe como filhas e filhos, e deixa que vivam com as consequências das suas escolhas, enquanto se movem por terra, céu e mar, e causam múltiplas, infinitas reações em cadeia, desde as primícias dos milhares de anos em que a gente é gente sobre a Terra. Sempre que bate o medo, eu me agarro a cada pequeno momento, cada pequeno encontro, cada sonho perdido, cada plano frustrado, com a certeza de que coisa alguma entre todas as dimensões e domínios do visível e do invisível, até a Eternidade, de onde tudo vem, e para onde tudo vai, é em vão.

2016 vs. 2020

Vagalumes Cegos

Querido Pedro,

Peço desculpas por ter demorado tanto a te responder, mas esses primeiros meses foram ainda mais difíceis que eu havia previsto. Entre fuso horário novo, emprego novo, casa nova, cidade nova, a rotina nova… Bom, uma vida toda nova, muita coisa para me acostumar. Mas saiba que eu estou com muitas saudades, e penso muito em você. 

Não sei quanta coisa mudou desde que você me escreveu pela última vez, mas fico feliz que você esteja satisfeito com seu novo cargo e suas novas responsabilidades. Eu sei que um emprego novo não cobre todos os buracos do que você perdeu, mas é bom saber que está ajudando. Espero que pelo menos te mantenha ocupado por tempo suficiente. Você já escutou isso de mim muitas vezes, mas não se esqueça: está tudo bem não estar muito bem por algum tempo, mesmo que outras coisas boas estejam acontecendo. 

Quanto a mim, estou bem. Eu passei a vida inteira sonhando com o momento em que eu me mudaria, e isso me deixou especialmente apreensiva a respeito de como as coisas seriam quando acontecesse de fato. Por sorte, ao longo dos anos, conforme eu cresci e aprendi que idealizações não levavam a nada além de frustrações, eu me esforcei pra desconstruir a ideia de que a vida começaria sempre amanhã, pra tentar viver melhor o presente. Isso me preparou para me acostumar a viver como rotina o que era só aspiração. As coisas sempre parecem muito bonitas na nossa cabeça, mas a nossa cabeça não tem estrutura para calcular as 24 horas de todos os dias que formam os meses e os anos. É nesses buracos que nossa imaginação não cobre que brotam nossas frustrações – os muitos dias comuns que existem entre um dia extraordinário e outro.

Apesar de tudo, eu tenho consciência de que ainda estou de lua de mel, ficando cada vez mais íntima da minha nova cidade, seus cantos e volumes, e principalmente da janela da minha sala. Meu apartamento é bem pequeno, e a vista não é muito impressionante, mas gosto muito de me sentar lá assim que chego em casa. Eu moro no segundo andar de um prediozinho em uma rua apertada, mas essa vista simples tem feito com que eu me apaixone pela minha vizinhança, e, aos poucos, aqui se torna, de fato, meu lar. Na esquina do meu quarteirão fica uma padaria lindinha, e eu dou uma volta mais longa pra pegar o metrô quando tenho tempo só pra comprar um pain au chocolat quentinho. Minha vizinha de porta cultiva todo tipo de plantas na sacadinha minúscula, e recebe os netos com mais frequência do que eu gostaria. Outra senhora do prédio tem uma filha que é dona de um restaurante vegano onde eu fui almoçar algumas vezes, no fim de semana. E, nos dias em que o horário é conveniente, se eu me sentar bem no cantinho da janela, com a cabeça encostada na parede, consigo ver o pôr do Sol. 

Ainda não fiz nenhum amigo, mas está tudo bem assim também. Não é que eu não sinta falta de ter companhia – pois eu sinto – mas, eu, comigo mesma, estou me redescobrindo como indivíduo de todas as formas possíveis. Em algum canto da minha cabeça, eu ainda penso que estou de férias, e que a qualquer momento faço as malas e volto “pra casa” – mas minha casa é aqui agora. Estou trazendo minha alma aos pouquinhos ainda. Eu tenho certeza de que, em breve, vou precisar amarrá-la à um ou outros alguéns, para que ela sinta o peso de uma comunidade, e se agarre com firmeza ao novo chão, mas vou me dar o tempo de flutuar, sem pressa, como se fosse um barquinho de papel num rio. Vai chegar o tempo de jogar a âncora.

Hoje, enquanto te escrevo, estou trancada, doente, sentada de frente pra minha janela, dividindo a atenção entre este e-mail e a rua. O motivo é besta, mas até agora não falei disso com ninguém, e só você poderia me entender como eu mereço. O problema, Pedro, é que eu estou perdidamente apaixonada… Por observar um moço bonito que passa todos os dias pela minha rua, entre 17 e 17:30. 

Eu não sei como ele se chama, não sei onde ele mora, mas ele é alto, anda devagar, e sempre carrega um saquinho de papel amarelo-pálido, de padaria. Reparei nele pela primeira vez na minha segunda semana de trabalho, passando na outra calçada, falando ao telefone. Eu sempre tiro os óculos quando ando na rua, mas, naquele dia, atipicamente, eu não os tirei quando saí do escritório. Foi o suficiente pra sentir aquele apertinho no coração que te faz até trocar os pés na hora de dar dois passos, sabe? Fiquei escutando “Sparks Fly” a noite toda, enquanto preparava o jantar, como se fosse uma adolescente apaixonada de novo, imaginando mil cenários em que eu o veria de novo e descobriria o nome, a idade, e onde morava. Dormi e acordei pensando nisso, fui pro trabalho pensando nisso, contei os segundos pra dar a hora de ir embora, escutei Taylor Swift na jornada de volta inteira. Saí da estação nervosa, cheia de borboletas no estômago, olhando pra todos os lados, até que finalmente o vi passando. E no dia seguinte também. 

Acredito que ele nunca reparou em mim – estamos sempre em lados diferentes da rua, e ele está sempre olhando para o chão, ou para o celular. Nas primeiras semanas, eu pensava todos os dias em como ia tentar falar com ele, qual seria o nome dele, de onde ele vinha, para onde ia. Eu acredito que ele trabalhe aqui perto, e mora longe, mas não sei dizer se ele vai em direção à estação pra pegar o mesmo trem no qual eu venho, ou se simplesmente entra em um prédio aqui perto mesmo. No fundo, no fundo, queria que ele morasse na minha rua, mas toda vez em que penso nisso, ele se torna uma pessoa, e deixa de ser uma vista.

Aliás, eu me lembro do dia específico em que ele se tornou um ponto na paisagem. Foi uma semana úmida, e, nesse dia, choveu de repente no fim de tarde. Eu estava com meu guarda-chuva transparente, que cobria metade da minha visão, e deixava tudo com cara de lente molhada. Ele quase me passou despercebido naquele dia – estava parado em frente à padaria da esquina, esperando que a chuva passasse, olhando pro céu cinza escuro debaixo de um letreiro neon, azul e vermelho. As gotículas no plástico faziam com que as luzes parecessem ser pequenos vagalumes neon. A chuva não parava de cair, e, da minha janela, eu pude ver que ele ainda esperou por algum tempo antes de decidir se deixar molhar, pra ir embora. Foi a oportunidade perfeita pra descobrir quem ele era, mas eu deixei passar, porque não queria tocar na vista. Era mais bonita assim.

Eu sei, Pedro, eu sei, é quase como se eu estivesse apenas apaixonada por um filme, mas ora essa, eu já me apaixonei por tantos! O que é mais uma imagem em movimento pra quem queria se casar com um desenho animado quando era adolescente? No fim das contas, ele é parte da minha paisagem, ele faz parte do meu processo de descobrir que esse lugar diferente do mundo pode ser meu também. Eu ainda posso mudar a situação em um instante caso pare e pergunte qual o nome dele, mas, enquanto ele for só uma vista, eu sou só uma trabalhadora estrangeira que corre para pegar o trem das 16:30 para chegar a tempo de vê-lo passando, andando devagar, carregando a mesma sacolinha de papel amarelo-pálido, de padaria. Ele não precisa saber quem eu sou, eu não preciso saber quem ele é. É bom o suficiente assim. E se ele for chato, casado, e tiver filhos e um preconceito contra estrangeiros? Seria um golpe duro demais para um simples barquinho de papel, aprendendo a flutuar nesse rio.  

Apesar de tudo, a ideia de congelar uma imagem para o meu entretenimento por muito tempo me parece injusta, então eu entreguei para a geometria do Acaso a decisão de fazer com que a gente se conheça oficialmente. A única coisa que eu posso fazer nesse jogo, claro, é criar ângulos. Por exemplo, agora já são 17:27, e ainda nenhum sinal dele. Eu preciso ir à farmácia da rua de cima comprar mais uma caixinha de ibuprofeno. Se eu sair do meu prédio agora, e nós estivermos do mesmo lado da rua pela primeira vez, seria um sinal do destino de que é minha hora de jogar a âncora? Eu gosto de pensar que sim, mas, de qualquer forma, só tem um jeito de descobrir.

Aguardo seu retorno.

Amélia.

Featured Image by Andre Benz on Unsplash

#3. as palavras que você deixou pra trás.

      Este texto é o terceiro de uma série. Leia o primeiro aqui, e o segundo aqui.

      Quando comecei a escrever essa série de textos, eu queria falar sobre pessoas & relacionamentos como se fossem luzes, inspirada por uma canção chamada “Mikrokosmos”. Confesso que não era assim que eu havia planejado fechar a trilogia, mas, olhando de volta pros faróis, e pro som que a estrela faz, eu percebo que estava desde o começo me preparando pra escrever isso aqui. Hoje, 17 de Setembro, fazem 4 anos que um álbum chamado “Story Op. 1” foi lançado. Eu pretendia guardar este assunto pra Dezembro, ou próximo Abril, mas achei justo publicá-lo hoje, em homenagem ao insubstituível Kim Jonghyun.

      Há uns 3 anos, eu perguntei pros céus qual era minha vocação divina na Terra; fui respondida na mesma hora – “você é uma contadora de histórias”.

      Ainda que existam palavras celestiais que chegam como uma surpresa, e trazem à existência novas realidades e novas identidades, as palavras que eu escutei apenas colocaram em ordem coisas que já existiam em mim. Eu gosto de histórias; aliás, eu gosto das pessoas que existem por trás delas, e do Deus que nos criou e que se revela através dos fragmentos da nossa rotina desorganizada – como se o plano dessa realidade fosse uma cortina, e a Eternidade estivesse a um pequeno rasgo de distância. Eu já escrevi muito sobre os motivos pelos quais eu gosto de escrever, como se eu me mantivesse como uma permanente leitora do mundo, como alguém que está sempre respondendo à outra coisa. 

      Hoje, especificamente, quero responder ao Jonghyun. Escolher publicar este texto é algo que eu faço com muito cuidado; tenho muito zelo e respeito por ele, sua família, fãs, e pelo legado que construiu. No desenrolar dos fatos, eu sou das que perderam o privilégio do seu tempo em vida, e só se apaixonaram pelo seu trabalho brilhante depois da sua morte. Falar sobre o Jjong hoje é falar sobre as palavras que ele deixou pra trás – como a luz de uma estrela que continua viajando e iluminando por muitos anos-luz, mesmo depois que ela se vai. 

      Em todo meu fascínio por estrelas, eu coleciono a luz de muitas dentro da minha mente e do meu coração. Eu me criei muito sozinha, dentro do meu próprio mundo, e os artistas cujo trabalho influenciou minha vida são como os melhores amigos que muitas vezes eu não tive, mas que estiveram ali pra mim, de uma forma ou outra. Minha vida já deu muitas voltas, mas, até hoje, conhecer o trabalho de alguém é como ganhar uma nova companhia, que chega no tempo certo, pra agregar como deve. Quando comecei a me aproximar da música coreana, mantive uma distância consciente do trabalho solo do Jonghyun, poque eu nunca quis que a tragédia falasse mais alto que qualquer outra coisa que ele tivesse pra me dizer. Pro meu deleite, com o tempo, a aproximação veio naturalmente, cuidadosamente mediada pelo aleatório do meu Spotify, e facilitada pela voz doce e cativante de alguém que, como eu, amava histórias, e era muito bom em escrevê-las e contá-las [e cantá-las]. 

Promovendo seu primeiro EP, “Base”, em 2015, cantando também “Juliette”, música que compôs para o SHINee. Das minhas performances preferidas, prestem atenção nos vocais.

      Além de membro por 9 anos de um dos maiores grupos da sua geração [o SHINee]Jonghyun também apresentou um programa de rádio, chamado “Blue Night”, entre 2014-2017. Em uma entrevista concedida em Abril de 2017, no último dia em que o programa foi ao ar, ele disse que entrar para o rádio foi o segundo maior ponto de virada da sua vida [o primeiro sendo a decisão de largar a escola no Ensino Médio]. Ele considerava ambos mais importantes que entrar pra indústria do k-pop, ou publicar o primeiro livro, pois foram decisões que transformaram e ampliaram sua visão de mundo. No Blue Night, que ia ao ar entre 00:00 e 02:00, ele se juntava aos seus ouvintes para construir e compartilhar um mesmo espaço, e fazer daquelas duas horas um lugar seguro de descanso no fim dos dias.

      O grande triunfo do programa foi ter tido sucesso como um canal de comunicação e troca, tão sinceros quanto fosse possível. Das muitas histórias que eram compartilhadas, ele começou a escrever canções, em um quadro especial intitulado “Escrito pelo Blue Night, composto por ele”, em que ouvintes enviavam seus relatos – vagos ou específicos, expressões de desejo do momento, desabafos curtos, pequenas manifestações de rotina que passariam totalmente desapercebidas até que alguém colocasse em palavras. Essas canções se tornaram eventualmente sua primeira coletânea musical – o Story Op. 1lançado em 2015, e que completa 4 anos hoje.

      Algumas músicas surgiram a partir de mensagens dos ouvintes – como a faixa “Like You”, baseada na história de um rapaz que estava em uma paixão unilateral e não-confessada, ou “I’m sorry”, sobre uma moça que havia recebido um e-mail de seu ex-namorado. “Maybe tomorrow” foi uma resposta às muitas mensagens sobre cansaço e desânimo ao fim de um expediente, enquanto “End of a Day” fala sobre ter pra quem voltar no fim de mais um dia. A excelente “Diphylleia grayi [skeleton flower]” partiu de uma proposta que ele recebeu, de descrever a vida através de flores e tempo, e foi também o título de um romance, publicado em Setembro de 2015, que combinava trechos e aspectos das canções do álbum em uma mesma história. [para saber mais sobre cada faixa – em inglês] A coletânea não foi promovida de forma convencional, nos music shows coreanos, mas com uma série de pequenos concertos, intitulados The Story by Jonghyun – momentos de convergência modestos para o vocalista de um grupo acostumado a esgotar as maiores arenas da Ásia.

      “U & I”, faixa no. 2 do álbum e música tema do Blue Night, fala sobre o encontro de todos os dias entre Jonghyun e seus ouvintes, para compartilhar um pouquinho de si uns com os outros. De dentro daquele estúdio, ele pode desconstruir partes da sua imagem de ídolo jovem, e revelar seu lado pessimista, suas indisposições, sua rotina atípica, e conhecer mais sobre a vida comum das pessoas que o acompanhavam – tanto as que viviam na mesma cidade quanto as que o escutavam de outros países, em outros fusos horários. Incontáveis pessoas que ele nunca conheceria pessoalmente, mas de cujas vidas ele fez parte – como imagem, como voz, como artista, poeta, canção – como lembrança. Todos os dias, quando se encerrava às 2 da manhã, ele deixava um convite, quase como uma declaração de missão – “Aqui fala o Jonghyun do Blue Night. Se você não tem um lugar de descanso, você é bem-vindo aqui sempre que precisar. Venha e descanse aqui amanhã, também.”

“U&I”, apresentada em um dos pequenos shows que acompanharam o lançamento do Story Op. 1.

      Hannah Ewens, em seu livro “Fangirls” [2019] chama atenção para o uso do termo “fandoms” [ou fan kingdoms] para se referir ao universo de admiradores que se organiza em torno de uma figura mais ou menos pública – um reino, algo que pressupõe a existência de um território sob o domínio de alguém. De fato, o maior poder que um artista tem é o de fundar mundos ao seu redor; abrir espaços e inaugurar novos lugares de encontro, dimensões paralelas em que pessoas diferentes se cruzam, e constroem memórias, e tocam as vidas umas das outras, movimentando a história e as redes da nossa sociedade. Na ocasião de seu último programa, no dia 02 de Abril de 2017, entre as muitas mensagens que recebeu, uma sempre me chama a atenção – “Graças ao Jjong-D, minha vida simples se tornou um pouco mais especial. Muito obrigada por sempre ter estado aqui, independente do quão bom ou ruim tivesse sido meu dia”. Assistindo às suas transmissões antigas, lendo suas entrevistas, e escutando suas músicas, ele continua fundando novos mundos e novos espaços, em mim e em outros; suas canções dão o tom de alguns dias, mudam o clima de outros, ou às vezes não encontram espaço algum. Algumas são como um abraço, outras me fazem rir e dançar, outras ficam como plano de fundo dos afazeres do dia. Já fiz amigos falando delas, já levei unfollows falando delas, e, hoje, eu escrevo um texto sobre elas, na esperança de que elas possam tocar a vida de mais alguém. O farol continua brilhando.

“Our Page”, música escrita pelos 4 membros do SHINee, a respeito da perda de seu 5º membro.

      Das muitas coisas que me fascinam sobre ele e sua música, a maior talvez seja o esforço em se manter sensível ao mundo ao seu redor, mesmo que as circunstâncias apontem na direção oposta. Todos nós enxergamos a realidade em narrativas – os pontos de vista, subjetividades, vieses, preconceitos e peculiaridades do nosso próprio olhar. Estar em constante troca é o que nos permite ver por outros olhos, reconhecer outras perspectivas e descobrir mais das facetas da vida que não se revelam quando estamos sozinhos. As histórias que guardamos e compartilhamos ficam bem sobre o limite entre aquilo que se pode, e o que não se pode conhecer de alguém com quem não se convive; nem sempre nós abrimos nossa boca pra falar algo bom, construtivo, ou verdadeiro, mas o momento do encontro sempre abre um novo mundo – como os faróis que nós construímos, e que continuam iluminando os mares, mesmo depois que ninguém mais se ocupa de tirar o pó das escadas. Nas palavras do próprio Jonghyun, “qualquer tipo de relacionamento [ou de conexão] é importante, pois você nunca sabe qual será o fim”

“1000”, minha música preferida, parte da coletânea Story Op. 2 [lançada em 2017]. A canção foi escrita em comemoração ao 1000º dia do Blue Night

      Olhar para uma pessoa como o Jonghyun me faz pensar no contraste pungente dos cheios e vazios que ficam quando uma pessoa vai embora, mas deixa muito. Os lugares que ele ocupava continuam lotados, porque as suas palavras eram muitas, eram fortes, altas, poderosas, e preenchiam todos os espaços. E é por isso que a sua ausência também fala tão alto; tudo que ele deixou pra trás faz lembrar a falta que ele faz. Fica um vazio de tudo aquilo que ele ainda poderia fazer e viver, mas não fez; a família que não construiu, as histórias que não contou, as músicas que não compôs, os livros que não escreveu, o retorno ao Blue Night que não aconteceu. As coisas que ele dizia com os olhos, com as mãos, além da própria voz, ainda ecoam, ainda se fazem presente, pra quem se importa de parar e ouvir, e pra quem não se importa, mas cuja vida toca a de outros que pararam pra escutar. São gatilhos pra lembranças, são o motivo de ficarmos acordados à noite, esbarram nos pedaços da rotina… Mas isso não é só sobre o Jonghyun, ainda que seja a respeito dele que eu fale aqui, hoje. 

      E, claro, de tudo que eu falo, falo apenas como simples fã, e uma fã póstuma – a menor e mais insignificante de todos, que nunca experimentou a expectativa presente de admirá-lo em vida, e para quem a ausência foi a primeira realidade. Mas este é o poder das histórias que compartilhamos – aquele limite entre aquilo que se pode, e o que não se pode conhecer de alguém com quem não se convive; nem sempre nós abrimos nossa boca pra falar algo bom, construtivo, ou verdadeiro, mas o momento do encontro sempre abre um novo mundo. Mesmo como fã póstuma – mesmo assim – eu sinto meu coração vazio toda vez em que, assistindo um vídeo ou escutando uma canção, eu me lembro que ele não está aqui mais. A morte é nosso problema mais antigo, mas é sempre um problema novo, porque morremos só uma vez, e quem continua em vida segue em direção à própria morte sem saber também o que isso significa. Sempre vai doer em alguém, mas isso também vai passar – mas algo também fica. Acho isso intrigante. 

      Se ele fosse uma história, seria uma grande história; é difícil explicar isto sem que pareça absurdo, então vou deixar em aberto, e confiar na imaginação dos leitores. De qualquer forma, a vida continua, e nós todos ainda temos muitas páginas para encher até o fim de todas as coisas. É assim que tudo corre, como um grande jogo de pinball, ou uma partida de futebol de botão, ou uma fissão nuclear e sua reação em cadeia; as ilustrações são muitas, mas o sentido é mais ou menos o mesmo. Nem tudo é bom, quase nada é louvável, pouca coisa é agradável, mas o mundo não parou de girar ainda por causa de nada disso. Contar histórias é uma forma de nos lembrar que, apesar de tudo, ainda pode ser um privilégio fazer parte da vida uns dos outros. Pelo menos, eu penso assim. Muito obrigada por fazer parte da minha, Jonghyun. You did well. 

      [Tem playlist também.]

#2. o som que a estrela faz (reprise).

       Este texto é o segundo de uma série.

     Minhas primeiras músicas favoritas foram “True Colors”, “Clocks” e “I don’t wanna miss a thing”. Cada uma chegou até mim de formas diferentes – por CD, por rádio, e por uma fita de VHS que meus primos mais velhos assistiam o dia todo na casa da nossa falecida avó. Dos 4 aos 7 anos, muita coisa muda pra uma criança, mas algo de constante era que, nessa época, eu não entendia nada de inglês ainda – nem o mínimo que me permitisse entender o que as letras dessas músicas diziam. Eu só entendia os sons, e era muito suficiente; eu era apaixonada pela forma como elas soavam, e meu peito queimava com elas.

     Lá pelos meus 11 anos, eu ainda não falava inglês, mas escutava músicas japonesas o dia todo. Aos 14, minha banda preferida era alemã. Nunca aprendi a falar japonês, mas nunca deixei de escutar essas mesmas músicas dos meus 11 anos, mesmo que até hoje eu nem sempre saiba recitar a letra de cor. Alemão, por sorte, eu aprendi, mas, antes disso, eu aprendi a repetir foneticamente os sons das canções, como fazia com as minhas preferidas em japonês, porque me importava saber cantar, saber participar delas, enquanto eu escutava. Eu era apaixonada pela forma como nós soávamos juntas, e meu peito ainda queima com elas.

     Hoje eu tenho 24, mas tinha 23 ainda quando comecei a montar minha primeira playlist de músicas coreanas. Pra quem me conhece há muito tempo, era só mais uma das minhas muitas fases, mas não é que cada fase, mesmo que vá passar, importa pra caramba, antes que passe? Acho que hoje já tenho bem mais que uma dezena, mas a questão não são os números. A questão é que elas me tocam todos os dias, da mesma forma que outras músicas cujas letras eu desconhecia me tocavam, através de suas melodias, suas batidas, e de como suas vozes soavam, fazendo meu peito queimar com elas. Elas se comunicam comigo.

     Pra uma pessoa que fala muito, qualquer coisa vira um diálogo, mesmo que sejamos só eu e uma canção conversando, dentro dos limites dos meus fones de ouvido. Às vezes, eu respondo com meu silêncio, às vezes com movimentos dançantes, ou produzindo pensamentos na velocidade da luz, ou criando uma playlist nova e implorando que todos os meus amigos escutem, pra saber se eles também conseguem escutar o que eu estou ouvindo. Como se, por trás de algumas faixas, existisse um outro som, que faz sacudir o fundo das minhas tripas, e puxa elas de dentro pra fora, até que trava no coração, e meu corpo inteiro se sacode. Quando o Sublime se revela pra mim, pelos ouvidos, ele escorre pelos olhos, pelos braços, pelos dedos, como se eu fosse Santa Teresa em êxtase, como se fosse a primeira vez todas as vezes.

     Já tem muito tempo que eu tento explicar qual é o som que a estrela faz, e talvez eu tenha demorado tanto a entender porque achava que esse som vinha de dentro, porque se parece muito com uma queimação incessante no peito [já escrevi sobre isso uma vez, em 2012]. E é a mesma queimação que eu senti na infância, quando descobri minhas primeiras canções preferidas, e todos os anos seguintes, enquanto eu cresci e deixei que muitas músicas me tocassem e me construíssem. A confusão era, principalmente, um problema de referência, porque eu achava que deveria olhar pra dentro pra encontrar uma estrela, quando, na verdade, eu tenho certeza que todas estão no céu, do lado de fora, bem distantes de mim. Como a queimação no meu peito, o som que a estrela faz, que vem de dentro, é apenas resposta de outro som, aquele que ecoa por todo o Universo, desde o dia em que o Criador bradou que houvesse Luz.

     O Sublime é, antes de tudo, um convite à humildade. O som que a estrela faz se parece muito com o som do meu coração apertado batendo por entre os meus dedos, sendo atraído para fora, tentando convencer todo o meu corpo a virar do avesso perante à constatação permanente de que eu sou muito, muito pequena mesmo, diante de toda a majestade que pode existir dentro dos acordes que formam uma melodia. É o som da imagem da Glória, da qual eu sou apenas um reflexo – tal qual a Lua, uma fiel testemunha.  Parece loucura pensar que qualquer canção pequena possa fazer ressoar em mim os sinos da Eternidade, mas isso faz parte da loucura de ser um fragmento de poeira gloriosa no Universo – como todas as coisas pequenas, elas fazem mais sentido quando você considera o todo. Existem os momentos em que a gente tenta se explicar, e existem aqueles em que a gente apenas senta, e contempla a manifestação da Glória. Selah.

     Photo by Greg Rakozy on Unsplash

    [fiz uma playlist com algumas das canções que me fazem ouvir o som que a estrela faz.]