minha música (esquecida) favorita

Você é do tipo que gosta mais das músicas que são esquecidas no churrasco da discografia do seu artista favorito? Eu também.

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Eu sou uma grande fã de K-pop. Não tem tanto tempo assim, mas ao longo dos últimos anos eu me tornei realmente apaixonada pelo mercado de idols, ao ponto de estar ativamente envolvida em produzir conteúdo, e até material acadêmico, a respeito. A razão pela qual eu gosto tanto? Bom, é mais difícil de explicar do que o que cabe em um parágrafo [mas você pode ler sobre isso em outros textos meus], mas, do meio de todos os diferentes conceitos, performances, coreografias, vlogs e programas de rádio feitos por rostinhos bonitos vestindo roupas bonitas, eu recebo música. E eu amo música, e, por aqui, eu sempre encontro música nova pra aproveitar. 

Já que você está aqui, já escutou a melhor música do ano de 2021?

Um dos meus grupos favoritos se chama NCT 127. Eles são um grupo de 9 membros, que debutou em 2016 sob a SM Entertainment, uma das gigantes da indústria. Eles fazem parte de um grupo maior, chamado apenas “NCT”, que tem 23 membros divididos entre grupos diferentes – e um deles é o 127. O NCT tem um conceito rotacional, que pode ser difícil de explicar pra quem é completamente novo (mas que é a forma mais simples de explicar as fotos com dúzias de rapazes que o Google te mostra quando você pesquisa o nome deles). De qualquer forma, a coisa importante é que o  NCT 127 é um grupo com música excelente. Eles são conhecidos por testar os limites e as tendências do mercado – o que significa que seus lançamentos nem sempre são unanimidade, mas tudo que eles lançaram nos últimos seis anos resultou em uma discografia bastante interessante. 

Os 23 membros do NCT, durante as promoções do projeto “NCT 2020”.

Minha música favorita do NCT 127 se chama “100”. É parte do primeiro álbum single em Japonês do grupo, Chain, lançado em 2018. Os créditos são do cantor-compositor Andrew Choi, que também faz parte da SM Entertainment, e do compositor Yunsu (SOULTRiii), que já trabalhou com outros artistas da SM (como o trabalho solo do cantor Baekhyun, membro do grupo EXO, e meu grupo favorito de todos, SHINee, sendo creditado pela excelente “Chemistry” no álbum The Story of Light pt. 2 (2018)). O álbum single em si é incrível, com cinco músicas fortes que falam muito do potencial do grupo, do primeiro ao último dos seus 18 minutos de duração. “100” é a última faixa, a cereja do bolo; é excepcional, com um instrumental que é tão pernicioso quanto é previsível, mas sem deixar de ser interessante, e uma ponte que prepara o terreno perfeito para uma das minhas codas preferidas em uma música pop. Eu já escutei “100” dezenas de vezes, e em nenhuma dessas vezes eu cheguei até o fim da música sem sentir um arrepio que fosse. 

Tem uma outra coisa muito importante a ser dita sobre essa música, que é o fato de que ela nunca foi tocada ao vivo. Nunca. 

A maioria dos grupos de K-pop tem atividades bem sérias no Japão – o segundo maior mercado fonográfico do mundo é a opção mais próxima e vantajosa para uma expansão além do público doméstico. Até o momento, o NCT 127 só completou uma turnê (em parte por conta da pandemia), mas, mesmo assim, dos 44 shows que eles fizeram pela Ásia, Europa, América do Norte e Latina, 14 foram no Japão. E, mesmo assim, nessas 14 datas, para uma audiência total de 74,000 pessoas, em nenhum momento eles apresentaram “100”. Eles apresentaram, sim, outras músicas da sua discografia Japonesa que estão entre minhas favoritas, como “Dreaming” (também do álbum single Chain), e “Kitchen Beat” (do seu excelente primeiro álbum em Japonês, Awaken (2019)). Mas, nada de “100”.

Eu sou um pouco dramática quando falo de canções que amo muito escutar; existem aquelas que são para se consumir às garfadas, sendo repetidas infinitas vezes, e existem aquelas que são para se consumir com moderação, porque elas causam uma euforia muito intensa, e deixam um gosto persistente na boca. “100” está mais perto do segundo tipo; eu não gosto de ouvi-la quando não tenho condições de estar completamente presente, porque faço questão de experimentar tudo que ela me oferece, ainda que seja só uma vez. Aliás, é por isso que eu sou fã de K-pop; eu aprecio as performances, as personalidades, mas, em última análise, eu preciso da minha porção sônica todos os dias, e meus grupos favoritos me mantém feliz e bem alimentada, nesse sentido. E a analogia com comida é muito boa, não é? Porque nós tomamos café da manhã, almoçamos, fazemos um lanchinho da tarde, jantamos, e sabemos que nem toda comida cabe em toda refeição. “100” se parece mais com a sobremesa do almoço. A porção é menor do que aquela que eu comi imediatamente antes, mas pode ter certeza de que tudo que eu fiz primeiro foi antecipando aquela boquinha de 3 minutos e 42 segundos. 

Como eu disse, eu sou um pouco dramática falando das músicas que eu realmente amo ouvir. Então, sim, “100” é sempre uma experiência para mim. E, toda vez que eu a escuto inteira mais uma vez, e chego ao final de novo, e me lembro que nunca houve uma performance ao vivo, e que o 127 talvez nem se lembre dela, pra começo de conversa… Eu não consigo não pensar sobre como a experiência da música existe apenas entre os alto-falantes e eu. Os produtores, compositores, distribuidores, e o 127, claro, providenciaram o serviço, mas eles não me conhecem, e sequer precisam se ocupar do fato de que eu gosto tanto dessa música, porque, sejam 10 ou 1000 as vezes que eu aperto o replay, eles podem receber um pouquinho a mais ou menos por stream, mas absolutamente zero feedback sobre essa pobre Brasileira de 26 anos que sempre precisa explicar que ela está falando do NCT 127, e não do SuperM, quando diz que ama “100”.

Este é apenas um exemplo de vários outros que eu poderia tirar da minha carreira de amar B-sides mais ou menos esquecidas, como “Live-in-Skin” do Foo Fighters, “Paradise” do BTS, ou “Signal” do f(x). Não é de propósito, tanto quanto não é minha culpa que eu me apegue à músicas que quase nunca vão parar em setlists. É uma pena, porque eu amo performances ao vivo, e a maioria das músicas soa melhor fora do estúdio, flutuando sobre e através das cabeças do povo, o verdadeiro lugar ao qual elas pertencem. Do meu lado do mundo, eu raramente, ou nunca, tenho chances de ver meus artistas favoritos, então esses vídeos de performances são a melhor forma (ou a única) para que eu experimente uma fração da sensação de estar sob as nuvens sônicas que eu mais desejo provar. Não quer dizer que eu nunca tenha tido um pouquinho de sorte – uma vez, em 2018, quando minha banda favorita de todos os tempos, Foster the People, trouxe de volta aos palcos uma música de 2011, “Broken Jaw”, uma faixa bônus que sequer estava em plataformas de streaming, e que eu amava, mas que não havia sido incluída em setlists havia vários anos (e bem à tempo da minha primeira vez os vendo ao vivo). E, sim, eu chorei um pouquinho, exatamente o que você esperaria de alguém que é um pouco dramática sobre as músicas que realmente ama escutar, mas que, mesmo assim, sabe bem que a experiência emocional intensa que ela associa à ouvir essas músicas é quase totalmente separada das pessoas que trouxeram a música à existência. 

Foster the People apresentando “Broken Jaw” ao vivo no SXSW, em 2011. Assisti essa performance incontáveis vezes desejando viver a mesma experiência.

Claro, isso não é uma discussão sobre as formas como essas músicas só existem devido às pessoas que as escrevem, produzem, cantam e distribuem, mas sobre a distância intransponível que existe entre nós e essas pessoas, que se manifesta em como nos sentimos sobre as coisas que apreciamos, como as consumimos, e quão livremente elas transitam pelas nossas vidas e dispositivos sem grandes conexões com o outro lado além de uma foto na capa, ou créditos impressos em papel. Eu já dei replays infinitos em músicas de cantores sobre quem eu não sei nada além do nome artístico. De certa forma, pelos álbuns, vídeos e tracklists em serviços de streaming, os alto-falantes e telas são muito menos como links, e mais como espelhos, me refletindo para mim mesma. Mesmo que sua superfície se tornasse macia como gaze, mesmo que eu pudesse chegar ao outro lado, eu não encontraria cantores e compositores esperando por mim, mas só eu mesma, sozinha com todas as coisas que tornam aquela experiência minha, todas as coisas que cobrem a distância entre eu e meu reflexo. 

E isso é ótimo! É o que torna isso válido e apreciável, porque, se eu apertar o play, posso ouvir a voz do Doyoung quantas vezes eu quiser, ainda que ele esteja doze fuso horários à minha frente, em algum lugar de Seul. Não é uma performance ao vivo, mas eu ainda assim posso voltar para “100”, “Live-in-Skin” e “Signal”, para “Knock on Wood”, de Red Velvet, e até para “Broken Jaw” – que agora, finalmente, está nas plataformas de streaming, e posso curti-la com facilidade em todas as versões que eu gosto. Por outro lado, minha favorita absoluta do FTP, “Tabloid Super Junkie”, uma faixa exclusiva de pré-venda do Supermodel (2014), segue sendo parte do time de B-sides esquecidas. Mas, pra ser muito franca, eu nem me importo tanto assim. Entre eu e os alto-falantes, eu já fiz a música tão minha que não sei se preciso de mais alguma coisa para torná-la melhor do que ela já é. E talvez seja por isso que seja dela que eu goste tanto. 

Photo by Yannis Papanastasopoulos on Unsplash

#2. o som que a estrela faz (reprise).

       Este texto é o segundo de uma série.

     Minhas primeiras músicas favoritas foram “True Colors”, “Clocks” e “I don’t wanna miss a thing”. Cada uma chegou até mim de formas diferentes – por CD, por rádio, e por uma fita de VHS que meus primos mais velhos assistiam o dia todo na casa da nossa falecida avó. Dos 4 aos 7 anos, muita coisa muda pra uma criança, mas algo de constante era que, nessa época, eu não entendia nada de inglês ainda – nem o mínimo que me permitisse entender o que as letras dessas músicas diziam. Eu só entendia os sons, e era muito suficiente; eu era apaixonada pela forma como elas soavam, e meu peito queimava com elas.

     Lá pelos meus 11 anos, eu ainda não falava inglês, mas escutava músicas japonesas o dia todo. Aos 14, minha banda preferida era alemã. Nunca aprendi a falar japonês, mas nunca deixei de escutar essas mesmas músicas dos meus 11 anos, mesmo que até hoje eu nem sempre saiba recitar a letra de cor. Alemão, por sorte, eu aprendi, mas, antes disso, eu aprendi a repetir foneticamente os sons das canções, como fazia com as minhas preferidas em japonês, porque me importava saber cantar, saber participar delas, enquanto eu escutava. Eu era apaixonada pela forma como nós soávamos juntas, e meu peito ainda queima com elas.

     Hoje eu tenho 24, mas tinha 23 ainda quando comecei a montar minha primeira playlist de músicas coreanas. Pra quem me conhece há muito tempo, era só mais uma das minhas muitas fases, mas não é que cada fase, mesmo que vá passar, importa pra caramba, antes que passe? Acho que hoje já tenho bem mais que uma dezena, mas a questão não são os números. A questão é que elas me tocam todos os dias, da mesma forma que outras músicas cujas letras eu desconhecia me tocavam, através de suas melodias, suas batidas, e de como suas vozes soavam, fazendo meu peito queimar com elas. Elas se comunicam comigo.

     Pra uma pessoa que fala muito, qualquer coisa vira um diálogo, mesmo que sejamos só eu e uma canção conversando, dentro dos limites dos meus fones de ouvido. Às vezes, eu respondo com meu silêncio, às vezes com movimentos dançantes, ou produzindo pensamentos na velocidade da luz, ou criando uma playlist nova e implorando que todos os meus amigos escutem, pra saber se eles também conseguem escutar o que eu estou ouvindo. Como se, por trás de algumas faixas, existisse um outro som, que faz sacudir o fundo das minhas tripas, e puxa elas de dentro pra fora, até que trava no coração, e meu corpo inteiro se sacode. Quando o Sublime se revela pra mim, pelos ouvidos, ele escorre pelos olhos, pelos braços, pelos dedos, como se eu fosse Santa Teresa em êxtase, como se fosse a primeira vez todas as vezes.

     Já tem muito tempo que eu tento explicar qual é o som que a estrela faz, e talvez eu tenha demorado tanto a entender porque achava que esse som vinha de dentro, porque se parece muito com uma queimação incessante no peito [já escrevi sobre isso uma vez, em 2012]. E é a mesma queimação que eu senti na infância, quando descobri minhas primeiras canções preferidas, e todos os anos seguintes, enquanto eu cresci e deixei que muitas músicas me tocassem e me construíssem. A confusão era, principalmente, um problema de referência, porque eu achava que deveria olhar pra dentro pra encontrar uma estrela, quando, na verdade, eu tenho certeza que todas estão no céu, do lado de fora, bem distantes de mim. Como a queimação no meu peito, o som que a estrela faz, que vem de dentro, é apenas resposta de outro som, aquele que ecoa por todo o Universo, desde o dia em que o Criador bradou que houvesse Luz.

     O Sublime é, antes de tudo, um convite à humildade. O som que a estrela faz se parece muito com o som do meu coração apertado batendo por entre os meus dedos, sendo atraído para fora, tentando convencer todo o meu corpo a virar do avesso perante à constatação permanente de que eu sou muito, muito pequena mesmo, diante de toda a majestade que pode existir dentro dos acordes que formam uma melodia. É o som da imagem da Glória, da qual eu sou apenas um reflexo – tal qual a Lua, uma fiel testemunha.  Parece loucura pensar que qualquer canção pequena possa fazer ressoar em mim os sinos da Eternidade, mas isso faz parte da loucura de ser um fragmento de poeira gloriosa no Universo – como todas as coisas pequenas, elas fazem mais sentido quando você considera o todo. Existem os momentos em que a gente tenta se explicar, e existem aqueles em que a gente apenas senta, e contempla a manifestação da Glória. Selah.

     Photo by Greg Rakozy on Unsplash

    [fiz uma playlist com algumas das canções que me fazem ouvir o som que a estrela faz.]