#2. o som que a estrela faz (reprise).

       Este texto é o segundo de uma série.

     Minhas primeiras músicas favoritas foram “True Colors”, “Clocks” e “I don’t wanna miss a thing”. Cada uma chegou até mim de formas diferentes – por CD, por rádio, e por uma fita de VHS que meus primos mais velhos assistiam o dia todo na casa da nossa falecida avó. Dos 4 aos 7 anos, muita coisa muda pra uma criança, mas algo de constante era que, nessa época, eu não entendia nada de inglês ainda – nem o mínimo que me permitisse entender o que as letras dessas músicas diziam. Eu só entendia os sons, e era muito suficiente; eu era apaixonada pela forma como elas soavam, e meu peito queimava com elas.

     Lá pelos meus 11 anos, eu ainda não falava inglês, mas escutava músicas japonesas o dia todo. Aos 14, minha banda preferida era alemã. Nunca aprendi a falar japonês, mas nunca deixei de escutar essas mesmas músicas dos meus 11 anos, mesmo que até hoje eu nem sempre saiba recitar a letra de cor. Alemão, por sorte, eu aprendi, mas, antes disso, eu aprendi a repetir foneticamente os sons das canções, como fazia com as minhas preferidas em japonês, porque me importava saber cantar, saber participar delas, enquanto eu escutava. Eu era apaixonada pela forma como nós soávamos juntas, e meu peito ainda queima com elas.

     Hoje eu tenho 24, mas tinha 23 ainda quando comecei a montar minha primeira playlist de músicas coreanas. Pra quem me conhece há muito tempo, era só mais uma das minhas muitas fases, mas não é que cada fase, mesmo que vá passar, importa pra caramba, antes que passe? Acho que hoje já tenho bem mais que uma dezena, mas a questão não são os números. A questão é que elas me tocam todos os dias, da mesma forma que outras músicas cujas letras eu desconhecia me tocavam, através de suas melodias, suas batidas, e de como suas vozes soavam, fazendo meu peito queimar com elas. Elas se comunicam comigo.

     Pra uma pessoa que fala muito, qualquer coisa vira um diálogo, mesmo que sejamos só eu e uma canção conversando, dentro dos limites dos meus fones de ouvido. Às vezes, eu respondo com meu silêncio, às vezes com movimentos dançantes, ou produzindo pensamentos na velocidade da luz, ou criando uma playlist nova e implorando que todos os meus amigos escutem, pra saber se eles também conseguem escutar o que eu estou ouvindo. Como se, por trás de algumas faixas, existisse um outro som, que faz sacudir o fundo das minhas tripas, e puxa elas de dentro pra fora, até que trava no coração, e meu corpo inteiro se sacode. Quando o Sublime se revela pra mim, pelos ouvidos, ele escorre pelos olhos, pelos braços, pelos dedos, como se eu fosse Santa Teresa em êxtase, como se fosse a primeira vez todas as vezes.

     Já tem muito tempo que eu tento explicar qual é o som que a estrela faz, e talvez eu tenha demorado tanto a entender porque achava que esse som vinha de dentro, porque se parece muito com uma queimação incessante no peito [já escrevi sobre isso uma vez, em 2012]. E é a mesma queimação que eu senti na infância, quando descobri minhas primeiras canções preferidas, e todos os anos seguintes, enquanto eu cresci e deixei que muitas músicas me tocassem e me construíssem. A confusão era, principalmente, um problema de referência, porque eu achava que deveria olhar pra dentro pra encontrar uma estrela, quando, na verdade, eu tenho certeza que todas estão no céu, do lado de fora, bem distantes de mim. Como a queimação no meu peito, o som que a estrela faz, que vem de dentro, é apenas resposta de outro som, aquele que ecoa por todo o Universo, desde o dia em que o Criador bradou que houvesse Luz.

     O Sublime é, antes de tudo, um convite à humildade. O som que a estrela faz se parece muito com o som do meu coração apertado batendo por entre os meus dedos, sendo atraído para fora, tentando convencer todo o meu corpo a virar do avesso perante à constatação permanente de que eu sou muito, muito pequena mesmo, diante de toda a majestade que pode existir dentro dos acordes que formam uma melodia. É o som da imagem da Glória, da qual eu sou apenas um reflexo – tal qual a Lua, uma fiel testemunha.  Parece loucura pensar que qualquer canção pequena possa fazer ressoar em mim os sinos da Eternidade, mas isso faz parte da loucura de ser um fragmento de poeira gloriosa no Universo – como todas as coisas pequenas, elas fazem mais sentido quando você considera o todo. Existem os momentos em que a gente tenta se explicar, e existem aqueles em que a gente apenas senta, e contempla a manifestação da Glória. Selah.

     Photo by Greg Rakozy on Unsplash

    [fiz uma playlist com algumas das canções que me fazem ouvir o som que a estrela faz.]

The Beautiful Dream

     Eu nunca gostei de caixas de areia, na infância, porque detestava a sensação de ser engolida pelos pés, dedinho por dedinho. É claro, eu cresci longe da praia e do mar; mesmo assim, eu sabia que você tinha cheiro de água salgada – mesmo que eu sequer soubesse como esse cheiro deveria ser. Talvez você fosse uma concha, mas eu também só as conhecia de longe, da TV. Só conseguia imaginar quem você era e de onde você vinha, sentada aqui, nesse parquinho.

     Eu poderia jurar que tinha 25, mas na verdade eu era uma criança de 5. Muito menor que eu deveria, com pernas magricelas, encolhida em um banco pra que meus chinelinhos não tocassem o chão. Eu tinha certeza que estava no meu bairro, na minha vizinhança, mas eu não reconhecia meus vizinhos, e não tinha amigos. Você tinha alguns, eu reconhecia você. E, se você me chamasse pra brincar, eu iria, mesmo que eu tivesse medo da areia (porque não tinha medo de você). Mas eu nem sabia seu nome! Ou talvez eu soubesse, mas não me lembrasse. Por que era tão difícil reconhecer a hora e o lugar das coisas? Talvez eu tivesse 25, e fosse grande demais pra caixa de areia, e conhecesse o cheiro de mar, e tivesse sentido na sua pele o frio e a dureza das conchas, quando você veio e segurou a minha mão. Não, o tamanho dos dedos me dava a certeza de infância, que parecia tão abundante e fácil enquanto nós éramos pequenos o bastante pra segurá-la.

     Havia uma brisa fresca, e um sol se pondo sobre crianças brincando a tarde toda, como se cada hora na verdade durasse três ou quatro. Ainda assim, tudo passava rápido, como um borrão, como se fossem lembranças sendo recuperadas.Talvez fossem, mas eu não me lembrava de você. Construindo castelos, subindo e descendo de escorregadores, sujando as roupas e ralando os cotovelos e o ladinho do braço; você me acertou com lama, nós bebemos água suja, e eu não me lembrava de ter sido tão feliz antes dos 16. Poderia ser só um sonho, porque eu criança nunca faria nada que causasse problemas, ou fizesse bagunça. Minhas mãos de desenhista se sujavam apenas do grafite das muitas histórias de princesa que eu já havia inventado, mas hoje eu realmente tinha um castelo. Você até tentou ser rei sozinho, mas eu já era uma arquiteta muito melhor, e conquistei aquela terra para mim também.

     E poderia ter chovido, e minha mãe poderia ter saído pra me procurar, e se assustar com a cor dos meus joelhos e da minha camiseta branca. Poderíamos ter perdido a escola no dia seguinte, porque acordamos com o peito cheio, de brincar por tanto tempo no sereno. Poderia ter sido um sonho, mas não era, porque eu estava acordada, e tinha 25, e suas mãos muito grandes seguravam as minhas, que continuavam pequenas, sentindo o frio e a dureza da sua pele de concha. Talvez eu estivesse intoxicada pela maresia, talvez eu estivesse intoxicada imaginando como seria se eu tivesse tido você comigo a vida toda. Naquele fragmento de tempo, nosso momento parecia se cruzar com a Eternidade, e eu podia escrever uma história inteira que nunca havia existido, só de respirar a certeza de que, com você, eu finalmente estava em casa.