5 de Janeiro de 2020.

A foto abaixo (tirada pela minha irmã) fez um ano hoje. Ela documenta uma experiência muito inusitada e quase surreal que eu vivi em Janeiro do ano passado, quando fui pra Inglaterra pela primeira vez desde 2016 pra apresentar uma pesquisa sobre como o fandom de BTS ocupava o Twitter, na Kingston University. Experiência sobre a qual eu, autointitulada “contadora de histórias por vocação divina”, nunca escrevi. Por falta de saco, por falta de tempo, por falta daquelas palavras que a gente só encontra depois que pensa o suficiente sobre um acontecimento. Mas hoje, 5 de Janeiro de 2021, parece que é finalmente um bom momento pra falar a respeito dela.

Eu sou Arquiteta apenas de formação, não de ocupação. Eu pago minhas contas com aulas de Inglês, a língua que eu domino o suficiente pra que a usasse para apresentar minha pesquisa independente diante de uma pequena plateia de gente que eu respeito muito de alguns países diferentes. A mesma língua cujo domínio me permitiu viver na Inglaterra por 11 meses entre 2015 e 2016, uma experiência que, em larga escala, definiu minha vida, mas, em pequena escala, tornou a viagem do ano passado mais especial, pelos sabores inconfundíveis do reencontro.

Comecei a dar aulas de Inglês em Abril de 2019, mas me comprometi de verdade com o trabalho apenas em Outubro, por conta da viagem, também, pois ela foi razoavelmente inesperada e eu precisava banca-la. Ainda bem que, em Fevereiro de 2007, meus pais conseguiram negociar um preço bacana pra que eu começasse a estudar na Cultura Inglesa de Uberlândia. Na época, eu tinha 12 anos incompletos, e, como a criança que eu era, achava que já estava “muito tarde” pra que eu finalmente realizasse o sonho de começar a aprender inglês (que inocência a minha). Nessa escola, eu conheci professores que me ensinaram a amar aprender a me expressar em uma língua diferente. Fiquei lá até o fim de 2012, quando completei meu curso CAE.

De volta a Outubro de 2019, admito que a falta de um diploma em Letras me fazia ter reservas quanto à começar a dar aulas; mas, naquele período especificamente, eu estava um pouco mais confiante que em anos anteriores, e a janela da oportunidade me parecia grande o bastante para que eu pulasse por ela. Estudando Coreano desde o começo do ano, eu havia constatado que minha mente muito analítica – afiada pela formação de Arquiteta, e combinada com minhas experiências estudando a Língua Inglesa e a Língua Alemã – tinha me ensinado a sistematizar as línguas de uma forma muito conveniente. Eu era capaz de me aprofundar nas suas estruturas, fundamentos e oportunidades de expressão usando minhas estratégias de análise de projeto, compreendendo e desconstruindo as duras e assustadoras regras, e fazendo com que meus alunos adultos finalmente entendessem como usar o “don’t” e o “doesn’t”, e como pronunciar “cycle” sem perder o sabor do L depois do C.

Essa pronúncia do L, por si só, me é muito cara – custou muitas horas de exercícios para que ensinasse minha língua presa a se mover da forma certa. Nessa mesma época, o distante ano de 2009, eu ainda estudava alemão, e alternava os esforços em L com os esforços em contornar meu freio para pronunciar os R’s em “Wir sterben niemals aus”, minha música favorita da banda que me motivou a estudar. Domar a minha língua para que se movesse de forma a reproduzir os sons que ela era naturalmente incapaz de fazer foi fundamental para que eu desenvolvesse a capacidade de reproduzir qualquer som que eu ouvisse. Essa habilidade inesperada me ajudou quando comecei a estudar canto, participou do desenvolvimento do meu sotaque que me faz soar como uma Americana que ficou tempo demais no Reino Unido, além, claro, de me ajudar no desenvolvimento da fluência e da desenvoltura com a qual eu conseguia falar uma língua que não era a minha – incluindo meu desafio mais novo, que é aprender Coreano o suficiente pra pensar numa pós-graduação na Coreia do Sul no futuro próximo.

Assim como eu estudei Alemão por causa de Tokio Hotel e Cinema Bizarre, a verdade é que comecei a estudar Coreano, sim, por causa dos meus artistas favoritos da Coreia do Sul. Eu conheci todos mais ou menos na mesma época, mas aqueles são parte da minha adolescência, enquanto estes são da minha fase adulta. Eu, adolescente, sonhava em ser designer, e estudar na Bauhaus; eu realizei o sonho de visitar o prédio da escola em 2016, durante meu intercâmbio, um dia antes do meu aniversário de 21 anos. Andando por aqueles corredores, eu tive a convicção de que os sonhos da Luisa de 14 anos, que haviam me carregado até aquele local, morriam ali mesmo. A Alemanha era, na verdade, o destino original que eu tinha em mente quando me inscrevi no programa de bolsas. Cá entre nós, eu fui para o Reino Unido a contragosto – eu sequer queria ir pra Leicester (a cidade onde conheci meus melhores amigos, que também reencontrei em Janeiro do ano passado).

Eu ainda não encontrei uma nova visão de futuro que me carregue como antes, mas eu tenho novos pequenos planos pelos quais consigo trabalhar e, com a Graça de Deus, alcançar, se for conveniente, como viajar para o Reino Unido para apresentar uma pesquisa que foi fruto de me permitir ser fã mesmo depois de crescida, de algo que eu havia rejeitado dez anos antes, quando era adolescente. Uma pesquisa que não teria nascido se eu não tivesse me formado no que me formei, se não conhecesse as coisas que conheço, se não dominasse as línguas que domino, se não tivesse passado por cada um dos minutos das horas dos dias das semanas dos meses dos anos que me levaram até o momento em que essa foto foi tirada, há 366 dias.

Em 31 de Dezembro de 2017, vivendo um inferno familiar, eu fui dormir com um cinto enrolado em uma das mãos, escondido embaixo do meu travesseiro, com a promessa de que eu acabaria com a minha vida se acordasse sentindo a mesma dor que eu sentia naquele momento. Entre eu, meus pensamentos e Deus, foi o dia mais difícil que eu já vivi. Eu gostaria de dizer que toda aquela dor já passou, mas meu coração ainda dói muito, e voz que me diz pra desistir ainda sopra no fundinho do meu ouvido. A vida é dolorida, de viver, de ver, de ouvir falar, mas a minha mente muito analítica – afiada pela formação de Arquiteta, e combinada com minhas experiências chorando de dor de tanto pensar em tudo que acontece nesse mundo – me ensinou a sistematizar a vida de uma forma que me ajuda a aguentar firme, um dia de cada vez.

Estou próxima de completar 26 anos. Eu vivi uma porção de outras coisas na minha vida além das que eu relatei aqui agora. Muitas perdas e derrotas, muitas frustrações, coisas faltando, dias estagnados, tantos momentos que eu já esqueci e que nem sei dizer se foram mais ou menos importantes pra criar quem eu sou hoje, e muitas, muitas pessoas que eu encontrei ao longo do caminho, que me ajudam a lembrar que eu não sou a personagem principal da história da humanidade, mas que eu ocupo sim um lugarzinho, um minúsculo papel que quero desempenhar com honra e gratidão ao Arquiteto do Universo, que me concedeu o fôlego que me faz estar aqui, hoje.

Não se engane, crer que existe um propósito em tudo vai muito além de racionalizar as voltas que a vida dá, pra olhar com Graça pros casos e acasos. Não é romantizar nem negar a dor, mas acreditar que, por trás das curvas e ângulos da geometria da existência, existe algo maior que minha própria vida (que é tão frágil, tão pequena, e pode acabar amanhã, ou agora mesmo). Acreditar que existe um Arquiteto infinitamente Bom, cuja mente analítica é impregnada de Amor, e que produz pensamentos muitos mais altos que os meus – não um Deus do caos, mas um Criador que cuida das suas criaturas, que as acolhe como filhas e filhos, e deixa que vivam com as consequências das suas escolhas, enquanto se movem por terra, céu e mar, e causam múltiplas, infinitas reações em cadeia, desde as primícias dos milhares de anos em que a gente é gente sobre a Terra. Sempre que bate o medo, eu me agarro a cada pequeno momento, cada pequeno encontro, cada sonho perdido, cada plano frustrado, com a certeza de que coisa alguma entre todas as dimensões e domínios do visível e do invisível, até a Eternidade, de onde tudo vem, e para onde tudo vai, é em vão.

2016 vs. 2020

#2. o som que a estrela faz (reprise).

       Este texto é o segundo de uma série.

     Minhas primeiras músicas favoritas foram “True Colors”, “Clocks” e “I don’t wanna miss a thing”. Cada uma chegou até mim de formas diferentes – por CD, por rádio, e por uma fita de VHS que meus primos mais velhos assistiam o dia todo na casa da nossa falecida avó. Dos 4 aos 7 anos, muita coisa muda pra uma criança, mas algo de constante era que, nessa época, eu não entendia nada de inglês ainda – nem o mínimo que me permitisse entender o que as letras dessas músicas diziam. Eu só entendia os sons, e era muito suficiente; eu era apaixonada pela forma como elas soavam, e meu peito queimava com elas.

     Lá pelos meus 11 anos, eu ainda não falava inglês, mas escutava músicas japonesas o dia todo. Aos 14, minha banda preferida era alemã. Nunca aprendi a falar japonês, mas nunca deixei de escutar essas mesmas músicas dos meus 11 anos, mesmo que até hoje eu nem sempre saiba recitar a letra de cor. Alemão, por sorte, eu aprendi, mas, antes disso, eu aprendi a repetir foneticamente os sons das canções, como fazia com as minhas preferidas em japonês, porque me importava saber cantar, saber participar delas, enquanto eu escutava. Eu era apaixonada pela forma como nós soávamos juntas, e meu peito ainda queima com elas.

     Hoje eu tenho 24, mas tinha 23 ainda quando comecei a montar minha primeira playlist de músicas coreanas. Pra quem me conhece há muito tempo, era só mais uma das minhas muitas fases, mas não é que cada fase, mesmo que vá passar, importa pra caramba, antes que passe? Acho que hoje já tenho bem mais que uma dezena, mas a questão não são os números. A questão é que elas me tocam todos os dias, da mesma forma que outras músicas cujas letras eu desconhecia me tocavam, através de suas melodias, suas batidas, e de como suas vozes soavam, fazendo meu peito queimar com elas. Elas se comunicam comigo.

     Pra uma pessoa que fala muito, qualquer coisa vira um diálogo, mesmo que sejamos só eu e uma canção conversando, dentro dos limites dos meus fones de ouvido. Às vezes, eu respondo com meu silêncio, às vezes com movimentos dançantes, ou produzindo pensamentos na velocidade da luz, ou criando uma playlist nova e implorando que todos os meus amigos escutem, pra saber se eles também conseguem escutar o que eu estou ouvindo. Como se, por trás de algumas faixas, existisse um outro som, que faz sacudir o fundo das minhas tripas, e puxa elas de dentro pra fora, até que trava no coração, e meu corpo inteiro se sacode. Quando o Sublime se revela pra mim, pelos ouvidos, ele escorre pelos olhos, pelos braços, pelos dedos, como se eu fosse Santa Teresa em êxtase, como se fosse a primeira vez todas as vezes.

     Já tem muito tempo que eu tento explicar qual é o som que a estrela faz, e talvez eu tenha demorado tanto a entender porque achava que esse som vinha de dentro, porque se parece muito com uma queimação incessante no peito [já escrevi sobre isso uma vez, em 2012]. E é a mesma queimação que eu senti na infância, quando descobri minhas primeiras canções preferidas, e todos os anos seguintes, enquanto eu cresci e deixei que muitas músicas me tocassem e me construíssem. A confusão era, principalmente, um problema de referência, porque eu achava que deveria olhar pra dentro pra encontrar uma estrela, quando, na verdade, eu tenho certeza que todas estão no céu, do lado de fora, bem distantes de mim. Como a queimação no meu peito, o som que a estrela faz, que vem de dentro, é apenas resposta de outro som, aquele que ecoa por todo o Universo, desde o dia em que o Criador bradou que houvesse Luz.

     O Sublime é, antes de tudo, um convite à humildade. O som que a estrela faz se parece muito com o som do meu coração apertado batendo por entre os meus dedos, sendo atraído para fora, tentando convencer todo o meu corpo a virar do avesso perante à constatação permanente de que eu sou muito, muito pequena mesmo, diante de toda a majestade que pode existir dentro dos acordes que formam uma melodia. É o som da imagem da Glória, da qual eu sou apenas um reflexo – tal qual a Lua, uma fiel testemunha.  Parece loucura pensar que qualquer canção pequena possa fazer ressoar em mim os sinos da Eternidade, mas isso faz parte da loucura de ser um fragmento de poeira gloriosa no Universo – como todas as coisas pequenas, elas fazem mais sentido quando você considera o todo. Existem os momentos em que a gente tenta se explicar, e existem aqueles em que a gente apenas senta, e contempla a manifestação da Glória. Selah.

     Photo by Greg Rakozy on Unsplash

    [fiz uma playlist com algumas das canções que me fazem ouvir o som que a estrela faz.]