31 Devocionais #7 – Deus e a (sua) dor

    
     Davi, chamado na Bíblia de homem segundo o coração de Deus, assim o era não por ser santo e   perfeito, mas por ter um coração que se arrependia de seus pecados e se quebrantava aos pés do Senhor. Mesmo assim, a Bíblia nos conta de uma das maiores tragédias em sua história, quando desejou a mulher de outro e, tomando-a para si, ordenou que o marido fosse morto. A Bíblia conta que foram 16 meses até que o Senhor o confrontasse, através do profeta Natã (2Sm 12:1-14). Segundo a lei Mosaica, o homem que adulterasse deveria ser morto; o Senhor, no entanto, teve misericórdia dele, não trazendo morte sobre sua vida. Porém, Davi não poderia escapar das consequências de seu pecado ocultado, e um dos pesos que recai sobre si é a morte da criança recém-nascida que o adultério havia gerado em Bate-Seba.
     
     O texto em 2Sm 12:15-23 nos conta que, ao saber que a criança morreria, Davi lançou-se em jejum e oração intensos, buscando alcançar misericórdia. No entanto, a Palavra já estava lançada, e a criança faleceu. Para a surpresa de seus servos, ao saber que a tragédia que tanto havia tentado evitar havia se sucedido, ele abandonou sua posição de humilhação, e, restaurado, foi até o templo e louvou ao Senhor. O Todah, o sacrifício/louvor de agradecimento, oferecido no Velho Testamento (Lv 7:12; Sl 56:12) se manifesta em sua maior e melhor forma quando as circunstâncias são desfavoráveis ao nosso coração, mas escolhemos agradecer à Deus por Sua soberania. Davi estava ciente de que o fato de que Deus não havia atendido àquela sua petição, mesmo diante de seu jejum e oração, não diminuíam o poder e o domínio do Senhor.
    

     O Pai ainda é maior que nossas dores e frustrações, e o coração aflito deve se achegar a Ele com confiança e fé. O mesmo Deus que era com Davi na aflição, é com você hoje. O mesmo Deus que derramou Graça sobre Davi e Bate-Seba, os abençoando com Salomão, derrama Graça sobre você hoje. Crendo que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que o amam, seguimos em frente, guardando a fé. O Senhor habita em meio aos louvores, e Ele habitará em meio às suas tribulações se você Lhe der acesso à elas. E Ele também será Aquele que te conduzirá à vitória por vir.

   
   
    

Preterida


Pretérito, passado, deixado,
Mais-que-perfeito recado
Em sombras, sons e limões;
Já foi, não é;
Se foi, se dói.
      
Um pássaro bêbado voa entortado,
E despeja desgraça num tempo passado,
Cheirando a cigarro e açúcar salgado;
Mal veio, já foi;
Se veio, se foi.
     
Quão tarde, quão cedo,
Um frio inesperado;
Meu coração motorizado desligado.
Podia, mas não;
Doente e são.
      
Sumido, chegado, malvado,
Mentido, metido, enrolado;
A Preterida fica no passado!…
Maldita, se cala;
Não diga mais nada.
      
Good bye. Bis bald. Au revoir.
      
      
    

Coração de Papel.


“Você me entregou um coração de papel.
        
Era um pequeno origami, feito a partir de uma folha de caderno pintada a lápis de cor vermelho. Alguns vincos se destacavam nas suas superfícies, como se as dobraduras houvessem sido erroneamente feitas várias vezes, antes que a forma final fosse alcançada. Chegou num dia qualquer, pelo correio, em uma caixa amarela comum. Nenhum bilhete, nenhuma plaquinha, nem mesmo o nome seu escrito em grafite acinzentado em uma das faces mal coloridas. Mas eu sabia a quem pertencia. Sabia que era seu. Tinha aquele seu cheiro que eu nunca havia sentido.
        
Por muito tempo eu pensei que ele fosse uma piada, ou até mesmo alguma forma de me mandar uma mensagem subliminar. Talvez você não me amasse tanto assim, ou tivesse medo de entregar-se por completo. Talvez você houvesse produzido várias cópias desse coração, para distribui-lo entre as muitas pessoas inocentes que passassem pela sua vida, e não lhe conquistassem a cordialidade mais profunda. 
       
Era engraçado carrega-lo por aí. Enquanto usei-o pendurado na minha mochila, exibindo-o a todos, escutei as mais diversas teorias e opiniões. Você bem entende como eu não realmente sabia o que significava, pra você, o tal do coração de papel, mas era tudo que eu podia ter vindo da vossa pessoa. Protegia-o quando muito chovia, e a água ameaçava sua integridade, e o tomava nas mãos quando o espaço era muito apertado para que sua forma não se desmontasse. Guardava-o numa caixinha sobre minha mesa de estudos quando não estava fora. Gostava de mantê-lo sempre perto de mim. Mesmo que fosse tão frágil, de papel.
       
Só entendi que era real quando você o pediu de volta.
       
As circunstâncias já me indicavam que as coisas entre nós não eram mais as mesmas, mas nunca pensei que teria que lhe entregar aquele coração. Era tão feio, mal feito… Tão meu. Tão meu havia se tornado, que quase amava mais àquele amontoado de dobraduras do que a ti. Não sei se você ainda se lembra, mas quando foi à minha casa, coloquei-o em suas mãos dentro da caixinha de vidro. Tinha medo que você o estragasse.
      
Mal sabia eu que eu o estragava, a cada dia.
       
Toda a sua fragilidade, sua simplicidade, sua delicadeza e suas peculiaridades se refletiam naquele papel mal colorido. Era parte de ti. Eu o isolei de sua fonte de vida, e não percebi que seu brilho se apagava, sua força morria, seu pulsar desaparecia. Sua essência morria. Ambos morriam.
       
Quando virou as costas para mim, lágrimas pesadas rolaram pelo meu rosto. Tanto tempo tentando cuidar de um coração de papel, que eu julgava ser uma piada tua. Que fosse ser pra sempre meu.
       
Sempre sentirei falta do coração.
             
        
Sempre sentirei sua falta.”

Cough Syrup

“If I could find a way to see this straight, I’d run away to some fortune that I should have found by now…”
Era um pátio enorme. Enorme, e muito cheio. Cheio de adolescentes idiotas se amontoando às beiradas dos pseudopopulares, dando risadas forçadas pra chamar atenção ou procurando os lugares estratégicos pra ver melhor uma gatinha bunduda. Todos se sentindo tão adultos, tão poderosos.
E lá nós duas.
Sempre havia sido nós duas. Isaura e eu. Sentadas em um canto pouco importante daquela grama bem cuidada. Ela tocava uma música qualquer em seu violão. Nunca soube pra quê exatamente ela o carregava pra todo lugar. Ninguém se importava. Nem mesmo eu, sua única amiga, me importava. Não conhecia a canção que ela tocava naquele momento.
Havia silêncio em nossos lábios, todos os dias, há muito tempo. Jamais entendi exatamente de onde surgira nossa amizade. Às vezes parecia que, num dia, nos sentamos uma próxima à outra, e simplesmente nos acostumamos a estar assim. Tantos anos e acho que nunca soube seu nome completo. Mas ainda assim, não precisávamos disso. Era essa a beleza subliminar da coisa.
– Porque esses óculos escuros, Isaura? – Vinha querendo perguntar havia alguns minutos daquele recreio. Fingia observar o céu para manter a aparência de que não me importava.
– Olhos injetados, Diana. – Esboçou uma careta sob aquele aviador espelhado, que lhe deixava com uma aparência sobremaneira bizarra, enquanto tocava uma sequência que parecia especialmente difícil. 
– Está fumando de novo? – Algumas coisas eram impossíveis de ignorar.
Encerrou a música antes de me responder. Começava a achar que conhecia aqueles acordes.
– Não sei se meu nome foi uma ironia ou uma intenção. Parecia que minha mãe sabia que iria morrer. Que iria me deixar sozinha. – Ficou com a cabeça parada por um momento, aparentando fitar o vazio. Voltou-se novamente para seu violão.
No fundo, eu sentia vontade de dizer alguma coisa, mas eu não sabia o quê. Não sabia como. Não sabia racionalizar esse sentimento.
– Não seja ridícula. Ter o nome de uma personagem que vive uma desgraça não quer dizer que você vai viver uma desgraça.
– Vem me dizer que você nunca teve um medo especial de acidentes de carro.
Fiquei calada por um momento. Ser vítima da idolatria da minha avó não me tornaria obrigatoriamente vítima da minha própria vida. Não sem que eu pudesse interferir.
– Você não respondeu minha pergunta. Está fumando de novo, Isaura?
– Estou. – Falava com tamanha calma, incomum. – E sabe, dessa vez não pretendo parar.
– Seguindo sua lógica eu deveria ser muito mais infeliz. Lady Di morre no final. Isaura se dá bem.
– Isaura é ficção, Diana. Isaura é ficção.
Recomeçou a tocar o violão. Era a mesma canção anterior.
– Parece que conheço essa música. Mas não me lembro muito bem dela.
– “Cough Syrup”. – Ela respondeu, num pigarro muito rouco.
– Ah, sim. Bonita, mas triste. Muito triste.
Ficamos em silêncio por mais tempo, em meio à canção e à gritaria do intervalo. Então, finalmente, o sinal soou. Levantei-me num pulo.
– Vem, Isaura. Que essa vida é difícil demais pra ficar vendo a banda passar – Estiquei braço e ofereci-lhe ajuda para se levantar; ela já havia parado de tocar.
– Nós não devíamos usar óculos se não fosse para vermos as coisas de forma diferente. – Minha amiga mal se movia. 
– Isaura, a Marilia já está indo pra sala. Você sabe que ela não aceita que ninguém entre depois do segundo sinal. – Balancei a mão estendida para chamar sua atenção.
– Eu estou ficando cega, Diana.
Nenhuma frieza no mundo teria me preparado para escutar aquilo.
Sentei-me novamente ao seu lado, naquela grama. Sem se importar com faltas na aula de Matemática ou se a coordenadora apareceria gritando a qualquer momento, ela retomou sua canção, tocando pelo resto de luz que seus olhos absorviam.
“… I’m waiting for this cough syrup to come down, come down”

Maresia

O teu perfume me cheira a maresia.

Cheiro de praia, de mata, de mar…
Perfume que, em ti, nunca senti,
Mas que me será para sempre uma memória;
O aroma, tão salgado e bucólico,
De não saber entender-te;
A lembrança inesgotável de talvez,
De quase;
Quase tão bom,
Quase o melhor de uma noite cansada,
Ou o pior de uma semana relocada.
Poderia ter sido bem mais que algumas palavras ideais.
Mas não foi, não foi; não foi nem será!…
Mal guardas o acre nome meu,
Nem o dizes entre sons adocicados;
Nossa distância é tanta quanto o mar…
Entre nós, o cheiro dessa água, tão gelada e salgada;
Essa água que vem e vai; maresia
Carrega o perfume teu.

Soneto de um peito sem coração

Um sopro de vento que atravessa meu peito
Não é tão gelado que congele a alma
Que, já fria, desprezada, em morte de leito,
Relaxa suas armas e enfim repousa, calma.
E tal qual corpo atordoado de inconstância
Que reprime, mas revela olhos de verdade,
Não há, para o peito vazio, a esperança
De sentir, sem um coração ou realidade.
Mas quem procuraria um coração perdido,
Tão machucado, desprezado e deprimido,
E jogado ao relento, e por ti perfurado,
Repleto de dor e feridas, maltratado?…
Tua é a culpa, quem dera não me rejeitasse
Cada vez que te olho; queria que me amasse!
[Imagem: Tumblr]