Alegoria da Taverna

Irlanda do Noroeste, 30 de Fevereiro de 2012,5i.
  
Nunca, em hipótese alguma, diário, se pode esperar muito de um lugar que não existe.
   
Apesar de tudo, o fato que circula de boca em boca pela Terra Média Aritmética é que, nesse pequeno burgo, de apenas quatro bilhões de habitantes, havia, no mais badalado e exposto dos centros comerciais, uma taverna. De Stormtroopers.
      
Apesar da localização privilegiada, o local era muito mal frequentado. Só gente feia e desajustada, uns metidos a gostosões e inteligentes que passavam ali cada hora de seu dia, parando ocasionalmente para comer, dormir, ou levantar alguns pesos. Havia até um bobão que vivia se casando, depois de umas doses de whisky. Não duravam muito os relacionamentos, não além dos minutos seguintes. Uma ou outra dividia a garrafa de bebida por um dia ou dois.
    
Aquele prédio mal cuidado e encardido era comandado por um ruivo alto, metido a viking, que pesava mais de 150 quilos (apesar de as más línguas garantirem que era na verdade um oriental pálido sob um encantamento de Narciso). Estava sempre atrás do balcão, à espreita. Vez ou outra sentava-se em uma mesa, trocava algumas palavras, e, só quando semeava alguma contenda, saía, e se escondia de volta sob sua máscara branca.
     
Diariamente, outros infelizes se juntavam à eles. Alguns nunca falavam palavra alguma, permanecendo sentados e solitários com suas bebidas. Outros jamais tomavam um gole do néctar envenenado que circulava pela taverna. Mas, independente de tudo, sempre havia algum bobo pra, em meio à qualquer quase silêncio, levantar seu copo e propor um brinde. O local inteiro vinha abaixo em meio aos gritos.
      
E como você bem sabe, diário, um desses bobos vem a ser essa que vos fala.
     
“Eu nem me lembro da última vez que acordei em casa!” Mais uma série de vozes, masculinas, femininas, grossas e finas, disparavam suas falas em línguas tão esdrúxulas que nem mesmo o mais viajado dos irlandeses do Noroeste entenderia.
     
Pelas janelas permanentemente semicerradas entrava pouca luz, e a iluminação interior era das mais precárias. Depois de tanto tempo no escuro, no entanto, já havíamos nos acostumado àquele ambiente nada convidativo. 
     
Pra ser sincera, eu também não me lembro da última vez que pisei fora daquele salão mal cheiroso.
Eu observava, às vezes, algumas sombras discretas nas paredes sujas de lama (fiz alguns desenhos delas até). Pareciam-se com árvores, prédios, carros e pessoas. Eram a ideia mais concreta que eu ainda tinha do que ocorria no exterior, mas não passavam disso – uma impressão. Formavam o skyline do mundo externo dentro da nossa bolha de sabão suja. Algumas vezes – algumas vezes só – eu me pegava querendo saber como estariam as coisas fora dali.
     
“FINISH HIM!”, alguém gritava. Sempre, sempre havia alguém para gritar alto o suficiente para me tirar dos meus pensamentos.
     
– Você é muito maldosa por ficar pensando nessas coisas! um gole de bebida Pura maldade o seu coração!
      
– Me respeitem, ok. Amo cada um de vocês, por mais feios que sejam. É só que, bem, o mundo não é só o que temos aqui!
     
– Claro que é! –Era bom contar com a certeza de uma (ou várias) garota por perto – E, caso um dia deixe de ser, a gente simplesmente se muda pra uma taverna maior.
     
– EI, EU OUVI ISSO, OK – De trás do balcão, Taberneiro Sensei limpava alguns copos – Eu abandonei três outras tavernas pra cuidar exclusivamente de vocês, me abandonem e sintam a fúria irlandesa!
      
Nesse exato momento, uma mesa especialmente longa discutia os últimos resultados das lutas dos encanadores italianos para conquistarem o direito de resgatarem suas princesas mensalmente. Algum novato, um garotinho, soltou uma besteira. Claro que não foi perdoado.
      
– Então você acha que eles não têm direito ao décimo terceiro resgate? É isso mesmo? – Um pirata magrelo se levantou – Você está realmente indo contra nossas ideias?
      
– B-bom, eu achei que i-isso e-era uma… Discussão. – o garotinho se encolheu na cadeira.
     
– É uma discussão, mas essa opinião não é válida. – Deu dois passos pra trás – KAMEHAMEHA! – um jato de energia saiu do magricela e atingiu o novato em cheio. O garoto voou pela sala, até atravessar e arrancar a porta da taverna.
    
     
Um minuto de silêncio, enquanto a luz do dia entrava por aquele enorme buraco recém-aberto. Ninguém sabia muito bem o que dizer.
    
     
Mais silêncio. Ninguém nem se preocupou com o garoto.
      
Senti que meus amigos me observavam, questionando-me com os olhos. Os ares se renovavam, e cheiravam à chuva, não à mofo. Minhas mãos começaram a tremer. Lord Taverneiro me observava. Era agora, agora ou nunca. Podia me arrepender, mas precisava ser corajosa. Sempre poderia voltar mais tarde. Ou não. Ou sim, claro. Eles me amam. Mas taverneiros não amam, já dizia minha mãe. Espera, por quê estou descrevendo todos esses pensamentos?
         
Apenas fechei os olhos e saí correndo.
     
Escutei alguns bobões gritando “NÃO, NÃO VÁ! FIQUE!”, mas segui em frente. E, quando caí em mim, já estava do lado de fora. Olhei pra trás. Dúzias de cabeças ruivas se amontoavam nas janelas. Fui e dei uma volta, como era bom esticar as pernas! Passeei por umas ruas, provei comida fresca, conversei com gente limpa e até tomei eu mesma um banho. Vesti roupas confortáveis e bonitas, parecia até outra pessoa.
        
Fiquei assim por algum tempo. Reencontrei-me com os amigos que havia deixado para trás. Perguntei sobre as famílias, o colégio, o que andavam fazendo de mais legal. Dormia às 23h todos os dias, para acordar pontualmente às 9h. Trocava os caminhos que fazia pelo burgo para evitar os que me conduziriam de volta àquela taverna suja, mal amada e caótica. Queria uma vida normal. Uma vida que não fosse regada à whisky e conversas interessantes sobre coisas pouco ou nada úteis nessa vida altamente fútil.
       
     
Mas você sabe, diário, que não é tão legal assim ser normal. Era óbvio que isso iria acontecer, me pergunto como não previ esse resultado desgracento.
        
      
Caminhava e me perguntava como quatro bilhões de pessoas conseguiam viver vidas tão sem emoção, sem diversão. Qual era mesmo a graça das roupas limpas? Elas se sujavam novamente, ora essa! E qual o problema em defender os direitos dos ouriços azuis? Nem era tão divertido assim ver as árvores e os prédios de perto. As sombras que eles produziam eram infinitamente mais bonitas, mesmo que as paredes fossem sujas. E aquelas pessoas bem arrumadas e belas, que tomavam banhos diários, não eram, juntas, mais legais que algum daqueles feios de cabelo mofado, individualmente.
         
Voltei correndo para a taverna. A entrada havia sido consertada. Parei em frente à sua placa – “Feios & Chatos”. Respirei fundo duas vezes e olhei pra trás mais uma vez.
       
Dane-se esse mundo exterior, eu queria voltar pra lá.
        
Suspirei e então, abri a porta.
       
     

Eu não tenho amigos.

– Eu não tenho amigos.
Felicia bufou, sentada em sua cama, encarando o guarda-roupa. Uma voz surgiu da porta.
– Ah, vira homem, menina. Claro que você tem amigos. Tem a mim!
– Katarzyna, você é uma voz do meu inconsciente que representa minha subjetividade e meu ódio de mim mesma. Além de não ser minha amiga por não ser real, você não possui uma opinião válida. Por favor, retorne ao meu córtex cerebral e me deixe em paz essa noite. – Felicia suspirou e deixou-se cair deitada sobre o travesseiro. Sua imaginação fez com que a voz se movesse em sua direção e parasse ao seu lado.
– Você tem amigos sim, sua resmungona.
– Se eu for realmente tão chata quanto você é, deveria ser fácil deduzir que seria impossível pra qualquer pessoa me aturar.
– Você tem a sua família.
– Família não conta.
– Jesus.
– Além dEle.
– Mas aí você está querendo demais, né?
– Suma, Katarzyna – Cobriu os olhos com as mãos.
– Você se prende demais a umas idealizações tão ridículas, Felicia. E acho que é por isso que você está sempre tão infeliz, reclamando de tudo.
Nenhuma resposta.
– Nada a declarar? Ótimo, vou continuar falando. “Quais idealizações?”, você poderia pensar. Bem, um bom exemplo seria essa mania de acreditar que amigos são aqueles que você vê todos os dias, quase moram na sua casa, se envolvem em altas confusões ao seu lado o tempo todo, te entendem completamente e, ainda por cima, completam suas frases. Por tal coisa, eu culpo a sessão da tarde.
Um grunhido.
– Amigos não são isso, sabe. Não apenas. Cada pessoa tem suas dificuldades na vida e todo mundo vem e vai, nem todos ficam sempre ao nosso lado. Mas existe um sentimento que permanece, que causa aquela sensação nostálgica e prazerosa de reencontrar uma pessoa querida depois de muito tempo e muita distância. Não precisa sentir no ar, a quatro mil quilômetros de distância, que você está mal, e pegar o telefone no exato momento. A confiança ao se abrir e a sinceridade ao escutar e falar são as coisas que realmente importam.
– Mas eles saíram sem me convidar. Nem a Peggy me ligou.
– E agora, por causa disso, você vai parar de falar com ela? Deixa desses tipos de drama, Felicia, pelo amor de Deus, que você já está velha demais pra isso. Você sabe muito bem que não iria, nem que eles te convidassem. E antes que você diga qualquer outra coisa – Felicia permanecia em silêncio, mas seu olhar rodeava pelo quarto – não, eles não deveriam te convidar por educação. Não depois de sete anos de convivência, né.
Silêncio.
Mais silêncio.
– Talvez você esteja certa, Katarzyna.
– Bem, na verdade eu apenas repeti tudo que sua mãe te disse hoje mais cedo. Mas como Vossa Senhoria nunca dá razão a ninguém além de si própria…
– Mentira.
– Desculpa clássica que apenas confirma minhas palavras.
– Vá incomodar outra cabeça, vá.
– Ah, cale-se. E vamos, desfaça esse bico que você fica feia pra caramba assim, e vá ligar pra Peggy.
A porta de seu quarto se abriu e sua mãe entrou.
– Conversando sozinha, Felicia?
– Mais ou menos, mãe, mais ou menos. O jantar já está pronto?
– Não, filha, ainda não. É que tem alguém te esperando no telefone.
– Quem?
– Peggy.
[Pros meus amigos queridos que sempre aturaram (e aturam!) minhas crises de carência ]

Cough Syrup

“If I could find a way to see this straight, I’d run away to some fortune that I should have found by now…”
Era um pátio enorme. Enorme, e muito cheio. Cheio de adolescentes idiotas se amontoando às beiradas dos pseudopopulares, dando risadas forçadas pra chamar atenção ou procurando os lugares estratégicos pra ver melhor uma gatinha bunduda. Todos se sentindo tão adultos, tão poderosos.
E lá nós duas.
Sempre havia sido nós duas. Isaura e eu. Sentadas em um canto pouco importante daquela grama bem cuidada. Ela tocava uma música qualquer em seu violão. Nunca soube pra quê exatamente ela o carregava pra todo lugar. Ninguém se importava. Nem mesmo eu, sua única amiga, me importava. Não conhecia a canção que ela tocava naquele momento.
Havia silêncio em nossos lábios, todos os dias, há muito tempo. Jamais entendi exatamente de onde surgira nossa amizade. Às vezes parecia que, num dia, nos sentamos uma próxima à outra, e simplesmente nos acostumamos a estar assim. Tantos anos e acho que nunca soube seu nome completo. Mas ainda assim, não precisávamos disso. Era essa a beleza subliminar da coisa.
– Porque esses óculos escuros, Isaura? – Vinha querendo perguntar havia alguns minutos daquele recreio. Fingia observar o céu para manter a aparência de que não me importava.
– Olhos injetados, Diana. – Esboçou uma careta sob aquele aviador espelhado, que lhe deixava com uma aparência sobremaneira bizarra, enquanto tocava uma sequência que parecia especialmente difícil. 
– Está fumando de novo? – Algumas coisas eram impossíveis de ignorar.
Encerrou a música antes de me responder. Começava a achar que conhecia aqueles acordes.
– Não sei se meu nome foi uma ironia ou uma intenção. Parecia que minha mãe sabia que iria morrer. Que iria me deixar sozinha. – Ficou com a cabeça parada por um momento, aparentando fitar o vazio. Voltou-se novamente para seu violão.
No fundo, eu sentia vontade de dizer alguma coisa, mas eu não sabia o quê. Não sabia como. Não sabia racionalizar esse sentimento.
– Não seja ridícula. Ter o nome de uma personagem que vive uma desgraça não quer dizer que você vai viver uma desgraça.
– Vem me dizer que você nunca teve um medo especial de acidentes de carro.
Fiquei calada por um momento. Ser vítima da idolatria da minha avó não me tornaria obrigatoriamente vítima da minha própria vida. Não sem que eu pudesse interferir.
– Você não respondeu minha pergunta. Está fumando de novo, Isaura?
– Estou. – Falava com tamanha calma, incomum. – E sabe, dessa vez não pretendo parar.
– Seguindo sua lógica eu deveria ser muito mais infeliz. Lady Di morre no final. Isaura se dá bem.
– Isaura é ficção, Diana. Isaura é ficção.
Recomeçou a tocar o violão. Era a mesma canção anterior.
– Parece que conheço essa música. Mas não me lembro muito bem dela.
– “Cough Syrup”. – Ela respondeu, num pigarro muito rouco.
– Ah, sim. Bonita, mas triste. Muito triste.
Ficamos em silêncio por mais tempo, em meio à canção e à gritaria do intervalo. Então, finalmente, o sinal soou. Levantei-me num pulo.
– Vem, Isaura. Que essa vida é difícil demais pra ficar vendo a banda passar – Estiquei braço e ofereci-lhe ajuda para se levantar; ela já havia parado de tocar.
– Nós não devíamos usar óculos se não fosse para vermos as coisas de forma diferente. – Minha amiga mal se movia. 
– Isaura, a Marilia já está indo pra sala. Você sabe que ela não aceita que ninguém entre depois do segundo sinal. – Balancei a mão estendida para chamar sua atenção.
– Eu estou ficando cega, Diana.
Nenhuma frieza no mundo teria me preparado para escutar aquilo.
Sentei-me novamente ao seu lado, naquela grama. Sem se importar com faltas na aula de Matemática ou se a coordenadora apareceria gritando a qualquer momento, ela retomou sua canção, tocando pelo resto de luz que seus olhos absorviam.
“… I’m waiting for this cough syrup to come down, come down”

Os Tristes Tigres na Grande Terra de Populi

Era uma vez quatro tristes tigres. Eles caminhavam pela Grande Terra de Populi, cabisbaixos, procurando um lugar onde pudessem se encaixar. Passaram pela Campina de Esopo, mas tropeçaram em uvas verdes e foram expulsos por uma raposa de olhos insanos. Andaram pela Terra de Grimm, mas não foram bem recebidos nos castelos: os guardas temiam que sua melancolia arruinasse o “Felizes para Sempre” que levaram tanto tempo para instituir como regra geral.
Atravessaram ainda, sem sucesso, a Cidade de Dita-Lex, mas as corujas que se postavam na entrada da cidade os espantaram com azeite e fogo. Então tentaram, sem sorte, atravessar os altos muros de pedra do Castelo de Margarida, bem na entrada Sul do Estado de Cantare. Mas os cavaleiros que se ocupavam em abri-lo pedra por pedra não permitiram sua passagem. Por fim, se detiveram numa estrada comprida, indicada como Caminho de Travas.
Não havia qualquer guarda, cavaleiro, animal, parede ou calabouço que pudesse impedi-los de seguirem por ali. Andaram por algum tempo quando, enfim, se detiveram numa encruzilhada que indicava duas opções de caminho: para a direita, “O Trigo de Travas”; para a esquerda, “Os Pássaros de Travas”. Os tigres menores, que eram três, aguardaram que o tigre maior indicasse o caminho que seria mais conveniente.
– Vamos para o Trigo – O tigre maior começou a caminhar para a direita, mas apenas dois dos tigres menores o seguiram. O terceiro pequeno e triste tigre continuou parado.
– Eu quero ir para os pássaros – Ele fazia um choro infantilizado, forçadamente felinizado.
– Tem certeza? – O tigre maior interrogou-o. Ele via nos olhos dele um mesmo desejo de desafio que acabara deixando-os quatro tristes, famintos e separados de sua terra-mãe. O pequenino meneou positivamente com a cabeça. – Pois bem, boa sorte.
Assim, três dos tigres tristes seguiram pela direita. Um, um só, triste tigre solitário, para a esquerda.
O caminho dos três tigres foi longo, mas eles finalmente chegaram a uma extensa plantação de trigo, com uma pequena casinha de madeira posta no meio do caminho, e uma pequena e tristonha menina sentada em degraus de madeira. Aos seus pés, quatro pratos cheios de trigo, gordo e dourado trigo. Os tigres tristes se aproximaram lentamente. O menorzinho de todos falou, pois sua vozinha era mais felina que a dos outros.
– Com licença, senhorita. Para quem são os pratos de trigo? – A garota parecia tão triste e faminta quanto os tristes tigres.
– Não sei. Mamãe mandou que eu esperasse para ver se alguém passava. Ela disse que eu só posso comer do meu depois de alimentar alguém com os outros três. – Ela levantou os olhos do chão e abriu-os inteiros, mostrando-os totalmente gigantes e brilhantes – Vocês aceitam?
Dessa forma, os três famintos e tristes tigres comeram, cada um, um prato de trigo, e assim fez também a triste e faminta menina.
O tigre solitário que seguiu para onde ficavam os pássaros de Travas andou bem pouco antes de alcançar o lugar. A área era enorme, rodeada por árvores, formando uma pequena praça social dos pássaros ao centro. Eles voavam livremente, e alguns até arriscaram brincar com o tigre – que não ficou nem um pouco menos triste com isso.
Caminhando mais um pouco, ele chegou até uma árvore onde havia um animal marrom, felpudo, com olhos pretos pequenos e uma boca enorme, com dentes serrados. Ele gritava com voz de locutor, e não se parecia nada com um pássaro.
– Ei, você, senhor tigre! Parece tão tristonho, mas vejo que é um animal muito distinto, inteligente… Aceitaria um pequeno desafio? – O tigrezinho se aproximou, ávido pela pergunta, quando esse animal esquisito deu um passo para o lado e deixou à mostra um ninho cheio de pássaros estranho, de pernas compridas e finíssimas. – Você vê, senhor, que eu aqui tenho um ninho com sete mafagafos. Será que poderias, como sua inteligência felina, desmafagafizá-los e tornar-se um Supremo Desmafagafizador?
O tigrezinho nem hesitou, subiu num só pulo ao galho do ninho. Tão logo estava no alto, o esquisito animal desceu da árvore.
– Ei, aonde você vai? Você nem me disse como se desmafagafiza um mafagafo!
– Ora, meu distinto felino, isso faz parte do desafio! – Assim, o animal, chapéu na cabeça, seguiu caminhando até desaparecer de vista. O tigrezinho, seduzido pelo desafio, foi incapaz de fazer o mesmo.
O tigrezinho olhava, tocava, sacudia os mafagafos, mas não fazia nem ideia de como desmafagafiza-los. Depois de inúmeras tentativas, ele continuava lá, olhando-os, tocando-os e sacudindo-os. E, conforme os anos seguiram, do galho ele não descia e, de triste tigre, acabou tornando-se um louco.
Quem hoje em dia tem a sorte de passar pela Terra que outrora fora Populi, jura que escuta, próximo às plantações de trigo, uma voz melodiosa e brilhante cantando, junto ao vento “Três pratos de trigo para três tristes tigres…”. Outros ainda juram que, próximos às árvores frondosa, dispostas em círculo, uma voz lamuriosa, melancólica e insana clama “Num ninho de mafagafos, sete mafagafinhos há… Que melhor os desmafagafizar, bom desmafagafizador será…”.

Irmão mais velho

Ser a criança mais nova não é exatamente a coisa mais simples do mundo. Especialmente no meu caso. Nasceram cinco filhas e um filho, para então nascer eu. Não que eu esteja reclamando nem nada, mas às vezes eu penso se existia algum complô do Universo ou algum plano maléfico, para me colocar nesse lugar.
Quando eu nasci, minha irmã mais velha já tinha 13 anos; A segunda, 10; A terceira, 8; As gêmeas, 6. Meu irmão tinha 5 anos. E então lá estava eu. Uma gravidez um pouco atrasada, um desejo que veio com a idade. Seis meninas, um menino. Satisfação concedida aos pais.
Minhas irmãs cresceram rapidamente diante dos meus olhos. Tornaram-se adolescentes, adultas. Formaram-se, casaram. Quando eu tinha 9 anos só ganhei minha primeira sobrinha, uma garotinha linda com os olhos azuis da família. Ainda na idade de 12, já era a única menina ainda morando em casa, com os meus pais. E foi quando a tragédia aconteceu.
Meu pai morreu. E de repente, minha mãe viu-se sozinha comigo e com meu irmão de 17 anos. As gêmeas ofereceram-se para voltar para casa e nos ajudar, mas como um coração maternal conseguiria aceitar que as filhas largassem seus sonhos e caminhos apenas para ajudá-la? Com muita coragem, ela resolveu segurar a barra. E eu, com apenas 12 anos, me vi sem nenhuma figura masculina para me orientar naquela complicada transição pra adolescência.
Meu irmão é autista. Ele passa a maior parte de seus dias imerso em seu mp3, pulando de música em música, sem conectar-se com a realidade. Eu passava várias horas ao seu lado, tentando trazê-lo para meu mundo, mas ele nunca respondia. Nunca.
– André, ajuda a Letícia a guardar as almofadas?
– Almofadas. – Ele repetia por algum tempo alguma palavra que eu dissera, até finalmente dar seu veredicto. – Escuto música. Música.
Fernanda e Kátia vinham algumas vezes pra casa. Iam conosco até a praça, onde ele observava passarinhos e, vez e outra, olhava para nós, e dizia entre dentes.
– Sol é bom. – E a luz nos aquecia.
Até que chegou um dia muito importante para mim. Talvez meio fútil, mas era meu primeiro encontro. Mamãe estava em uma reunião, e minhas irmãs estavam tocando suas vidas. Uma de nossas tias havia se oferecido pra cuidar do André por mim, naquela noite. Ela não se cansara de dizer que eu estava linda demais, mas a insegurança me consumia. Não me sentia pronta.
Quando ouvi a campainha soar, desci as escadas afobada. Antes de abrir a porta, porém, decidi tentar mais uma vez com meu irmão. Chamei-o pelo nome, mas ele não olhou para mim. Juntei o fôlego e perguntei:
– André, eu estou bonita?
A cabeça dele se virou lentamente, até encontrar fundo meu olhar. Ele falou com uma voz límpida e consciente.
– Você tá linda.
Logo voltou ao seu mundo paralelo. E eu nunca, em toda minha vida, consegui me sentir mais forte e bonita do que naquele dia, aos 15 anos.
Texto fictício, criado para um concurso de contos de 2010.