vida
Welcome to the New
Engraçado porque, no momento, tudo aquilo que eu chamo de “casa” é novo, diferente do que era 45 dias atrás. Agora, já estou bem estabelecida, correndo pra viver meus sonhos mas, acima de tudo, os sonhos de Deus pra mim aqui. E, mesmo sabendo que eventualmente a vida vai me levar de volta pra casa, o tal do choque cultural não me pegou. Nenhuma dificuldade me fez chorar e sentir tanto a falta do lar que eu quisesse largar tudo e ir embora correndo.
Se você é alguém que já me leu em outros momentos, sabe que sempre fui muito apegada à dor, em parte por acreditar que ela constrói, muito mais que destrói. E isso é bíblico, na verdade – “melhor estar na casa em que há luto que na casa em que há riso”. Não que eu não ria aqui; rio muito, o tempo todo, pelos bons amigos brasileiros que vieram comigo, e pelos bons amigos que estou fazendo no ambiente um tanto hostil da universidade e na igreja tão aquecida pelo amor do Senhor que encontrei. Mas, para alguém que sempre ponderou tanto sobre solidão, nunca deixa de faltar a ponta de dor no coração quando se lembra de que tudo que já conheceu até hoje na vida está muito, muito distante.
Uma gratidão bem mais funda, que consegue se regozijar no domingo perdido lavando roupa, no quarto bagunçado, na falta de família no Natal, na ausência de caronas num dia de chuva inesperada, na falta de colos e mimos quando algum mal ataca o corpo ou, tão fortemente, o coração. Muito mais que feliz por morar na Europa, no Reino Unido, em Leicester – essa cidadezinha tão mal compreendida – , estou feliz por estar construindo minha história e poder contar com esse ano tão privilegiado.
Por trás de toda compra feita com dinheiro trocado hoje pra não faltar amanhã, existe um propósito muito maior, que foi orquestrado com amor pelo Autor da minha Fé. Estou cumprindo meu destino. Nada pode ser mais gostoso que isso.
Uma em um bilhão
Literata
De novo, madrugada.
Eu sempre vi o Sol nascer. Desde pequena, mamãe gostava de madrugar, e eu a acompanhava. Também sempre vi as estrelas em seu momento mais brilhante – na madrugada mais densa, das luzes mais apagadas. O escritório de papai sempre foi em casa, e eu sempre o acompanhava em suas muitas madrugadas de trabalho.
O começo da manhã é sempre mais solitário. Poucas pessoas acordadas, a maioria fazendo café, desligando despertadores, sob as cobertas. Trabalhadores nos ônibus, o Sol surgindo no cantinho da minha janela. Minha irmã dormindo, quase desmaiada. Mamãe vindo até mim “Já está acordada, pirulita?”. Sempre os melhores programas de tevê. A madrugada é silenciosa, calma. Só os sons do mouse. Eu desenhava o tempo inteiro, bons tempos de pixel art. Papai escutava blues e Sérgio Lopes. Às vezes me mostrava algo que estava fazendo, ou entrava no The Die Line e me convidava pra fazer uma pausa. Eu permanecia ali até que mamãe acordasse e me mandasse ir pra cama. Às vezes eu ia, às vezes não.
Os tempos passaram e a escola se intensificou. Dormir tornou-se imprescindível. Fiquei por muitos anos vivendo uma vida de horários medíocres, sofrendo com alguma insônia por bastante tempo. Vivia das 5h até as 23h. 22h era incrivelmente tarde. Isso, claro, até que entrei na faculdade. Eu posso ser exagerada, mas existe algo de muito bonito, apesar de deprimente, em ficar tantas noites acordada, seja em casa ou na universidade. As madrugadas e o mais primitivo das manhãs são próprias de quem as presencia, em silêncio ou fazendo muito barulho. Eu soube que algo realmente havia mudado quando 23h tornou-se cedo. Significava que eu ainda tinha toda a madrugada pela frente até que meu prazo de serviço se encerrasse.
Parei de ser acompanhante das madrugadas, tornei-me dona delas. Tornei-me dona da cadeira em que me sento, e de onde assisto o Sol se pôr e, várias horas depois, na mesma posição, seu ressurgimento. Minha sobrevivência momentânea passou a depender disso. Prazos, datas, entregas, trabalhos, maquetes, seminários, projetos, e a madrugada como a excelência do processo. Meu melhor momento. Já passou da meia noite e ainda parecem oito. Da manhã ou da noite. Sempre parece bom e certo viver meio nas sombras. Fazer acontecer quando as pessoas estão dormindo.
Essa semana, vi três vezes o Sol nascer de uma janela que não pertencia nem a mim, nem a nenhuma das outras pessoas que estavam comigo. Minha mesa estava bagunçada, meus olhos, inchados, e meus dedos doíam do desenho. Desliguei uma das dezenas de músicas que havia escutado em todas aquelas horas e observei tudo que estava ao meu redor. Mais um amanhecer. Mais um dia da minha vida. Não sua, não nossa, não deles. Minha. Mesmo que mamãe ainda vá me buscar às 7h, na universidade. Mesmo que ela faça um lanche para que eu leve. Mesmo que, quando eu vá pra casa, encontre-a, e papai, ainda trabalhando pra que paguem minhas contas também. Estou construindo minha história, num lugar que é só meu. Com um povo que é só meu, e ideias que são só minhas, e motivos que são só meus; estou construindo minha história, um amanhecer por vez.