Uma impostora melhor que você.

 

     Eu assumi, há algum tempo, um compromisso sem precedentes com a verdade na minha vida. Apesar de ainda estar em desenvolvimento, e de eu realmente não entender plenamente quais os termos deste compromisso, eu tenho descoberto que comprometer-se com a verdade e a integridade, de corpo e alma, é ainda mais desconfortável que você consegue escrever, ou descrever. E causa muita confusão. Começando em mim, ou você, porque nós somos essencialmente inclinados pra autopreservação, e, neste jogo de sobrevivência, tudo que mente, finge, ou engana, faz melhor ao ego.

     Existem pessoas que focam mais nos resultados, em vez dos processos que levam até eles, e cada um consegue mais ou menos ajustar a própria consciência de acordo. Eu particularmente sempre fui muito preocupada com os processos, mas eu fui viciada demais na opinião dos outros, desde criança (ou talvez todos nós fomos, mas eu não tenho como falar por todos). Quanto mais você se ocupa da opinião dos outros, mais facilmente você abre mão da verdade e da integridade – porque, na maioria das vezes, seus atos mais verdadeiros ficam só entre você e sua consciência, e isso raramente contribui pro sucesso da sua imagem perante os outros. Aliás, eu até ousaria dizer que a integridade mais importante é aquela que fica no secreto,

     Eu sei que tenho problemas com autoimagem e aceitação há uns bons anos – a maioria de nós tem, eu presumo – , mas, até algumas semanas atrás, eu te diria que tinha aprendido a me importar muito menos com a opinião dos outros. Eu reduzi drasticamente minhas expectativas e ambições na vida, passei a valorizar o silêncio, as coisas modestas e escondidas, os pequenos trabalhos e tudo aquilo que se passa pela minha mente e que nunca vai virar um texto, nem uma legenda de Instagram, nem uma frase no Twitter. Se você me perguntasse mais, eu diria que havia abrido mão dos desejos por alcançar lugares altos, e só queria ser “eu” – tudo dito em um tom que transformava qualquer outra pessoa que fosse ou pensasse diferente de mim em um ser “menos evoluído”.

     O problema é que minha mente não parava de refletir sobre todas essas coisas nas quais eu pensava. O fluxo de pensamento ficou flertando com o fundo da minha mente por vários dias, semanas, até que a ideia começou a se infiltrar e, então, eu precisei começar a assumir pra mim mesma que eu não era muito modesta, mas muito, muito orgulhosa. Profunda e extremamente orgulhosa. Tão orgulhosa (e ferida), que eu estava escolhendo abrir mão de todos os meus sonhos, planos, desejos, vontades, perspectivas, expectativas… Por medo de fracassar, sentir todas as dores da frustração, e me tornar uma piada diante dos olhos públicos. A covardice mais amarga que eu já tive que admitir.

     Eu era viciada na opinião dos outros, então toda ideia de valor que eu tinha de mim mesma estava baseada em ser a melhor em alguma coisa. Esses são os fatos, eu quase sempre estive em ambientes em que eu era a melhor em alguma das coisas que eu fazia – meus desenhos, meus textos, meu conhecimento sobre meus assuntos preferidos. Eu não tinha capacidade de me reconhecer como uma pessoa de valor se eu não fosse sempre a melhor, porque eu não conseguia imaginar como eu poderia ser amada de outra forma. E eu ainda tive muita disposição pra me esforçar pra superar pessoas do meu convívio que eram melhores que eu, e talvez por isso as pessoas que me conheciam sabiam me machucar tão bem, quando me diminuíam ou me comparavam de forma negativa. Sempre foi tudo que eu tive.

     Crescer invariavelmente me trouxe cada vez mais provas de que eu poderia sempre ser muito boa, com meus talentos naturais, e meus esforços, mas que, em algum lugar do mundo, sempre haveria alguém melhor do que eu. Poderia ser na China, mas também poderia ser do meu lado. Na minha sala, na minha turma, na mesma igreja, com os mesmos amigos. Eu era muito boa em artes gráficas, mas minha irmã se tornou muito melhor que eu. Minha melhor amiga estudou um curso de Humanas e leu muitos mais livros que eu. Foi com certeza também o que consolidou meu pânico de autoestima, quanto mais eu percebia que eu jamais seria a mais bonita, ou mais magra, nem comparada com as meninas ao meu redor, nem comparada com as milhares de meninas que a gente consegue ver todos os dias, agora, pela internet, como uma galeria de terror, de todos os rostos e corpos que eu nunca terei.

     Com o tempo, conforme eu conheci muita gente que argumentava melhor, e escrevia melhor, que havia amadurecido muito mais, e aguentava muito mais, e era muito melhor que eu em todas as coisas nas quais eu me apoiava pra sobreviver, eu entrei em desespero – e, no meio do desespero, tomei todas as decisões erradas. Eu estava me agarrando a ídolos de papel, que se desmanchavam nas águas do mar no qual eu estava, mas, em vez de trocar de barco, eu preferi me afogar, porque eu não estava disposta a passar pela dor excruciante de tirar uma parte de mim. Como se isso fosse um câncer muito grande, como daquelas pessoas que acabam deformadas pelo tamanho e peso dos tumores, que precisava ser tirado sem anestesia, porque é assim que as coisas da alma funcionam.

     Minha irmã passou os últimos quarenta dias fora, e voltou com uma frase que me perfurou dolorosamente – a verdadeira humildade é querer ser exatamente quem você é em Deus, nada acima, nem abaixo, mas querer ser tanto mais quanto menos do que quem você é, é orgulho. Eu poderia jurar pra mim que estava agradando a Deus e deixando ir embora meu orgulho, escolhendo propósitos modestos e sonhos ínfimos, mas acabei descobrindo que, como uma boa ilusão, eu estava subindo uma escada, enquanto acreditava estar descendo. Passei meses tentando me comprometer com a verdade, enquanto vivia uma mentira, cheia de palavras bonitas, enfeitadas, repetidas, automáticas, que ajudavam a enganar minha consciência consciente. A minha grande sorte – e sua, caso você também tenha se identificado com isso – é que nosso subconsciente, e o Espírito, nunca se enganam. Mas, se estamos disposto a nos deixar convencer da nossa grande fantasia, fica a critério de cada um. Existem pessoas que focam mais nos resultados, em vez dos processos que levam até eles. Cada um pode tentar ajustar a própria consciência de acordo.

 

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     Esse texto não tem uma conclusão clara porque o processo ainda não está completo. Claro, existem muitas coisas ainda a se dizer sobre propósito, sobre identidade, sobre motivações secretas, desejos ocultos, perspectivas mais próximas ou mais distantes, qual o plano maior, e a razão pela qual nós existimos, mas tudo tem uma hora designada, e eu não sei se é esta. Eu poderia dizer, de forma bastante dramática, que estou no meu ponto mais baixo, mas eu não quero testar o quão ruim as coisas ainda podem ficar.

     No entanto, ainda tenho esperança suficiente pra esperar que esse seja realmente, pelo menos, o ponto mais baixo deste processo, e que o que vem em seguida é cura e plenitude, mas eu achava que estava assim há bem pouco tempo, e consegui descobrir que essa estrada tinha mais uma curva acentuada inesperada. Dói demais, eu não consigo aceitar às vezes o quanto dói ser humana e insistir em ter fé suficiente pra acreditar no fim dos processos, quando tudo que você queria era uma morte rápida, e indolor. Literal ou figuradamente, cada um interprete como quiser. Mas, convenhamos – o tempo se arrasta, ou voa, mas, de qualquer forma, a morte chega, qualquer morte que seja. Não é melhor continuar acreditando que, se eu aguentar essa dor, posso alcançar Graça pra Vida plena depois? Eu realmente penso que sim.

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