A Vida de Um Bloqueio Criativo

Um dia antes do meu aniversário de 30 anos, visitei This is Taylor Swift: A Spotify Playlist Experience em Seul, para me despedir da minha juventude. Fui sozinha, encontrei minhas amigas depois, para celebrarmos. Estava usando a pulseira da amizade que ganhei na exposição, e acho que cantamos “You Belong With Me” no karaokê, depois de alguns drinks. No dia seguinte (meu aniversário de fato), acordei em meio a uma terrível crise alérgica. A amiga com quem eu morava na época precisou viajar a trabalho, então passei o dia sozinha, no escuro, abraçada à um rolo de papel higiênico, espirrando sem parar até pegar no sono.

This is Taylor Swift: a Spotify Playlist Experience. Seoul, 1 de Março de 2025.

Depois do meu aniversário, Taylor Swift desapareceu dos meus dias por alguns meses. Não foi de propósito; acho que cansei um pouco da imagem pública dela, mas sempre feliz pela loirinha, sua vida mudando diante dos olhos de todo mundo. A minha também mudava; a trilha sonora dos meus dias juntava vozes novas aos velhos favoritos das minhas piores temporadas, as canções às quais eu recorro quando nada dá certo, o futuro parece um vazio, e a esperança se esconde. Considerando tudo, acho que eu sabia, desde os primeiros teasers, que The Life of a Showgirl não seria a minha praia. De fato, a música não me convenceu, nem me sinto particularmente afeiçoada da narrativa que ela está vendendo. Refletindo sobre esse estranhamento, comecei a pensar nos últimos dois ou três anos da minha vida, na paralisia criativa que se infiltrou pelas rachaduras do meu ofício de escritora, e no meu próprio senso de conexão com a obra e a história da Taylor.


Há quatro anos e meio, eu publiquei um texto chamado Minhas histórias de amor, contadas por Taylor Swift — até hoje, o post mais lido do meu site. Na época, deixei bem claro que não me considerava propriamente uma fã; escrevi o ensaio porque achava engraçado que quase todas as minhas histórias de coração partido tinham, de pano de fundo, alguma canção da Taylor. Talvez fosse apenas a estatística jogando a favor das coincidências entre alguém da minha idade e a maior popstar da minha geração. Ainda assim, o verdadeiro motor daquele texto foi que, enfim, eu tinha me conectado com ela, por causa de “invisible string”. A letra tocava o âmago das minhas aspirações íntimas — a inescapável interligação de todas as coisas e a esperança de redenção pelo amor.

Depois disso, fiquei às margens da comunidade de fãs da loirinha, espiando alguns debates de vez em quando, através das Swifties de longa data que conhecia. Acompanhei de perto quando ela lançou Red (Taylor’s Version), mas foi só em Midnights que me senti completamente capturada pelo espírito do momento. Era meu primeiro semestre estudando na Coreia, e eu estava projetando toda a ansiedade de estar sozinha num país distante em um dos poucos amigos que tinha: um artista alto, bonito, interessado em música brasileira. Inspirada pelo álbum, comecei um diário separado, só para os pensamentos que me mantinham acordada à noite — quase todos sobre minha afeição por ele, me questionando se ele sentia o mesmo. Uma semana depois, ele me disse que estava namorando outra pessoa, e logo em seguida começou a me evitar completamente. Uma enxurrada de emoções, antigas e recentes, despencou sobre mim, e eu ainda não tinha raízes profundas o bastante para não me abalar. Eu precisava de ajuda para lembrar quem eu era; “You’re On Your Own, Kid” estava lá, todas as noites, me ajudando a reencontrar meu foco, na caminhada de quinze minutos entre o laboratório e o dormitório. 

Ela também estava presente meses depois, quando conheci um cara depois de um jogo de futebol. Ele me acompanhou até em casa, todas as minhas luzes se acenderam; liguei para minha melhor amiga ainda nas escadas, para dizer que tinha acabado de conhecer O Cara Certo. Nosso primeiro encontro foi justamente na época em que ela lançou a edição ‘Til the Dawn de Midnights, com a versão expandida da delicada e etérea “Snow on the Beach”, que acrescentou ainda mais encanto à alegria daquele momento. Taylor, por outro lado, tinha acabado seu relacionamento de seis anos no mês anterior. Foi difícil processar a experiência do sentimento que havia instigado minha conexão com a música dela, mas eu estava tão, tão convencida de que tinha finalmente encontrado o fio dourado da minha invisible string. Imediatamente comecei a planejar uma continuação do meu primeiro texto sobre histórias de amor; antes disso, peguei uma das entradas do meu diário de Midnights e transformei em um texto para celebrar o lançamento de Speak Now (Taylor’s Version), saboreando o prazer de compartilhar algo sobre estar feliz e apaixonada.

Terminamos no fim de agosto, e a ironia não me escapou. Estávamos na Europa, e foi repentino, mas não exatamente uma surpresa — na noite anterior, perto da meia-noite, eu escrevi no meu diário sobre o sentimento de querer ir embora. Mesmo assim, foi brutal; a covardia e a crueldade dele me despedaçaram, abrindo ao mesmo tempo todas as minhas feridas mais profundas. Eu estava longe de casa, cercada de estranhos (que depois viraram amigos), todos gentis o suficiente para me ajudar a manter meus pedaços juntos, até eu poder voltar à Coreia. 

Em retrospecto, aquele foi o começo do meu bloqueio criativo.

Quando postei algumas dessas fotos pela primeira vez no Instagram, recebi uma DM dizendo que eu parecia muito leve e feliz. Àquela altura, eu estava há 2, quase 3 semanas sem comer ou dormir, chorando a noite toda e sobrevivendo durante o dia pela graça de Deus e dos meus novos amigos. Linz, Setembro de 2023. Fotos por Patrick Münnich.


Começou com uma enxurrada de palavras, como nunca antes: um parágrafo novo a cada poucas horas, entre as muitas outras tarefas que eu tinha para cumprir. Eu estava desesperadamente tentando criar um caminho lógico para fora do turbilhão do nosso término, mas coisas novas surgiam o tempo todo, nossos caminhos continuavam entrelaçados por amigos e compromissos em comum. Apesar de ter sido um relacionamento tão curto, foi devastador, porque ele abriu um buraco no centro da pessoa que eu acreditava ser. Eu me ressentia por ser quem eu era, e escrevia dia e noite para reorganizar a narrativa da minha vida em algo com que eu pudesse verdadeiramente conviver, para seguir adiante. Paralelamente, eu trabalhava na minha dissertação de mestrado, discutindo sentido e produção de significado, todas as leituras atravessaram a minha crise pessoal e despertaram uma ideia. Queria escrever algo grande, meio científico, meio literário, para processar os detalhes de uma temporada tão intensa e, em última instância, justificar as minhas escolhas de vida — primeiro, diante de mim mesma, depois, diante do meu ex. Eu dormia muito pouco, indo e voltando entre a Coreia e a Áustria, colocando todo o meu tempo livre na busca pela linha de pensamento que me levaria até o magnum opus da minha crise dos vinte-e-tantos.

Desde então, publiquei bastante, correndo atrás dessa visão; criei um blog novo, com uma amiga, e um Substack, para manter as ideias fluindo, mas nada correspondeu às minhas expectativas. Primeiro, eu sentia vergonha de tudo o que escrevia, por toda a humilhação emocional que tinha enfrentado. Também passei a desconfiar dos meus próprios sentimentos e da minha capacidade de dar sentido às minhas experiências, depois de ter me enganado tão gravemente a respeito dele. Emaranhada no drama do nosso rompimento, vivi algumas das oportunidades mais empolgantes da minha vida, mas acabava me autocensurando sempre que tentava articular como me sentia naquele período, como se cada pensamento fosse um terrível lembrete da minha sentimentalidade imbecil. Eu até sentia vergonha de ser escritora, a ousadia de me colocar entre artistas de verdade sem ter nada a oferecer além de um relato vagamente sociológico de sentir e pensar demais. Por fim, eu me sentia cada vez mais sobrecarregada pela escala do que queria fazer. Esse tipo de atitude, eu aprendi, é sinal de que se está tentando compensar em excesso.


Aqueles que nunca superaram a síndrome de underground da adolescência não conseguem entender o que há de significativo em se conectar com uma canção tão famosa que se torna inescapável — ainda mais num cenário midiático tão fragmentado. Eu mesma trabalho com música independente, e minha compositora favorita é uma islandesa obscura, com um cult following (à qual sou devota desde os 17 anos). Mas Taylor Swift é como uma língua comum, uma carta que você sempre pode puxar para se conectar com alguém, até nos círculos mais inesperados. Quando ela lançou The Tortured Poets Department, em meio a tantas críticas públicas, eu a defendi o tempo todo. O número esmagador de músicas foi, para mim, uma grande coletânea de modos de processar as frustrações que eu enfrentava naquele período, de coração partido, e cada vez mais perto dos 30 anos. Não estava conseguindo extrair do momento a escrita que queria, mas tinha as palavras de outros para atravessar os dias.

Mais do que tudo, The Tortured Poets Department soava sincero e desnudo. Havia dor e desalento, visíveis e sensíveis, nos motivos musicais e visuais que ela escolheu para representá-los, mas também confissões lúcidas de atitudes repreensíveis da parte dela. Não é fácil criar algo brilhante, que ainda soe fresco ainda que esteja contando a mesma história que tantos outros já contaram antes. Eu sentia como se estivesse de luto com ela: pelo fim de sua história de amor fatídica, pela perda do “e se” que a acompanhou por uma década, os anos passados em Londres, a vida que ela acreditava que teria. Também havia lampejos de esperança — alguns vindos da carreira, outros do novo relacionamento. Não pude deixar de imaginar que tipo de trabalho teria sido se ela já não tivesse encontrado outra pessoa, antes de lançar o álbum. Se teria sido tão fácil escrever e cantar “I’m pissed off you let me give you all that youth for free” em So Long, London sem um novo amor, algo tão promissor, capaz de suportar o peso de tudo aquilo que ela tinha perdido.

Em vez de postar uma das minhas músicas favoritas de The Tortured Poets Department (a própria title track), vou registrar aqui meu maravilhoso (e inesperado) encontro com a própria Patti Smith. Seoul, 19 de Abril de 2025.


O ponto alto de The Life of a Showgirl é logo a primeira faixa: “The Fate of Ophelia” é simpática e deliciosamente empolgante. Onde a letra sacrifica complexidade emocional em nome da alegoria, a alusão constrói um quadro cativante de redenção — “you saved me from the fate of Ophelia”. Quase como da primeira vez que ouvi “invisible string”, senti um pouco de alívio e esperança — por ela, primeiro, e por mim, em seguida. Há outros momentos interessantes: “Opalite” é divertida e otimista, e “Father Figure” faz muito com raiva e ironia, um clássico instantâneo. A faixa-título, “Life of a Showgirl”, merecia uma resolução mais clara, um pouco menos de clichê (aqui cabe uma menção ao gênio de “Clara Bow”), mas não deixa de ser familiar, o calor da voz de Sabrina Carpenter tornando tudo ainda mais convidativo. O restante soa como uma coleção de rascunhos: ganchos melódicos marcantes desperdiçados em letras duvidosas e frases desajeitadas, as dissonâncias agravadas pelas expectativas que ela cultivou ao longo dos anos. Acima de tudo, não há uma âncora. “Eldest Daughter”, a famosa faixa 5 deste lançamento, foi, francamente, um erro: sem rumo, com letras de mau gosto, uma sátira mal aplicada, a profundidade de um pires. 

Eu ia usar este espaço para compartilhar uma excelente video essay sobre o álbum mas decidi que “The Fate of Ophelia” seria mais divertido.

Conteúdo sobre o álbum, na ocasião do lançamento, foi inevitável no meu lado da internet, as reações partindo do bem decepcionante ao completamente frustrante (isso sem contar as demonstrações irracionais de ódio). O volume de discurso em torno de tudo o que Taylor Swift faz é enlouquecedor, mas esse dilúvio de think pieces é justamente o que ela trabalhou para construir — sua carreira foi erguida numa construção coletiva, ajuntando pessoas através do seu jeito de ser extremamente vulnerável, excessivamente detalhada e infinitamente ambiciosa. Mas, para um álbum que pretendia lançar luz sobre o outro lado da fama, Showgirl soa como mais uma performance (e não de propósito). Não acho que o problema seja que ela não tinha o que dizer, como sugeriram alguns, mas não parece que estava pronta para fazê-lo. Talvez o intervalo entre os lançamentos tenha sido curto demais, talvez estivesse exausta da turnê, com uma capacidade de julgamento comprometida (mesmo para um conceito leve). Posso perdoar minha amiga parassocial Taylor Swift por não saber como falar de uma temporada nova e feliz, mas me reservo o direito de sustentar meus critérios, como fã e escritora que espera algo melhor dela. 

Ainda assim, parte do seu entendimento próprio parece alinhado ao material; em entrevista a Jimmy Fallon, ela disse que esta é uma de suas eras com a maior correspondência entre como ela se sentia no passado, quando escreveu as músicas, e como se sente agora, ao lançá-las. Lembro de como me senti escutando TTPD, e no significado de olhar para tempos turbulentos a partir da promessa de restituição. Faz sentido que ela soe meio dispersa agora, se estava acostumada a lançar álbuns com mais distância emocional da estação que estava tentando capturar. Talvez parte da dissonância teria sido evitada se a campanha promocional tivesse sido menos pretensiosa, mas as estratégias de marketing também parecem equivocadas, como se ela não percebesse que certas coisas mudaram — até mesmo as expectativas de seus fãs mais fiéis. Esse tipo de miopia, eu aprendi, é sinal de que se está tentando compensar em excesso. Na ânsia de reparar os anos de melancolia, ela falhou em acertar o elemento aspiracional de cantar a própria felicidade. Faltou, nas músicas, algo que me faça querer sair por aí e me apaixonar também.

Em 1:18, ela diz “Essa foi, eu acho, a era mais bem alinhada, em termos de onde minha vida estava, quando escrevi, e onde estou agora, quando foi lançado.”


Refletir sobre a falta de clareza em The Life of a Showgirl me fez pensar na minha crise criativa dos últimos anos, e os motivos pelos quais tem sido difícil escrever sobre uma das temporadas mais intensas da minha vida.

A explicação simples é que nada do que eu escrevi nos últimos dois anos realmente correspondeu à minha visão, nem aos padrões que estabeleci para ela. A parte complicada é como essa visão e esses padrões surgiram. Minhas crises criativas não são de encarar uma página em branco; eu sempre posso escrever algo, dezenas de parágrafos, mas que não resultam em algo que eu queira que outros leiam. Para sair disso, precisava decidir se minha escrita não me satisfazia porque eu precisava trabalhar mais, ou porque eu precisava mudar os parâmetros (“um pouco dos dois” não basta). No fundo, permanecia a esperança de redimir uma temporada tão desastrosa da minha vida através da escrita — dar sentido ao meu estado atual, me convencer de que meu caminho ainda era a vida em que eu acreditava, voltar a me orgulhar daquilo que considerava minha vocação. Eu queria provar alguma coisa, para mim e para os outros, mas a realidade do que eu tinha a oferecer estava em conflito com o que eu queria alcançar. Naquela época, eu não acreditava em mim mesma, nem na vida que tinha escolhido viver. Mesmo agora, ainda não acredito.

O aspecto mais persistente dessa crise é minha desilusão com os limites de histórias e narrativas — uma experiência nova para alguém que sempre se deu bem com os horizontes semânticos da linguagem. De repente, eu passei a odiar a sensação de esmiuçar uma fase difícil até transformá-la numa visão mais otimista, ou de recorrer à interconexão de tudo para encontrar bênçãos escondidas. Minha terapeuta costumava propor que eu aproveitasse a liberdade de interpretar as coisas e dobrar a narrativa ao meu gosto. Em vez disso, eu senti raiva, porque nenhuma mudança de perspectiva a respeito das minhas perdas e fracassos dos últimos anos me dá poder sobre o estado geral da minha vida, nem sobre a liberdade dos outros, de que formem opiniões a meu respeito sem a minha autorização. Controle, controle, controle — a cada rascunho novo, aumentava o desejo de retalhação por cada rejeição e perda dos últimos anos.

Passei a maior parte de 2023 e 2024 ocupadíssima, mas reservei um tempo para essa festa especial do lançamento de 1989 (Taylor’s Version), organizada pelo clube de fãs de Taylor Swift no KAIST. Algumas das minhas amigas não puderam comparecer, então fiz pulseiras da amizade para elas. Meu look foi inspirado em “Welcome to New York.” Daejeon, Outubro de 2023.

As coisas têm sido melhores nos últimos meses, de formas quase milagrosas — do tipo que poderiam me fazer acreditar de novo que ainda estou seguindo o caminho do fio dourado. Escolhi resistir à vontade de agarrar essa sequência de coisas boas e tecer com elas uma imagem falsa de esperança, uma desculpa para expressar o alívio de me sentir um pouco mais no controle da narrativa. Voltar a estar feliz depois de um tempo miserável é um sentimento estranho, cheio de fissuras que exigem atenção total. Nada do que conquistei diminuiu o peso da minha insuficiência, nem me arrancou da sensação de ser inútil e merecer as acusações que me silenciaram. Continuo perdendo o sono com outras coisas, coisas novas. Aqui, preciso sustentar meus parâmetros: nem meus sentimentos nem minha sinceridade significam nada para os outros se não resultarem em algo de substância, fruto do meu trabalho. Enquanto eu estiver escrevendo para me provar alguma coisa, não vou tocar o centro da questão, e não vai ser bom o bastante. O problema está em outro lugar, e eu preciso continuar procurando.


Dos muitos rascunhos e publicações deste período, algumas coisas chegaram, de fato, bem perto do que eu estava procurando. No Corvo Correio, tudo que publiquei desde Setembro de 2023 foi algum tipo de resposta à minha crise criativa (um paradoxo deveras prolixo). Incluindo “loucura e angústia“, sobre a morte da minha avó — algo que escrevi ao longo de um ano, com traços da autoabsorção da ansiedade e dos lados negativos da interconexão de tudo. Meu favorito de todos é “Reduce, Reuse, Recycle: How to be Disposable,” postado originalmente no sappy sallows, durante uma madrugada de estudos. Para aquele blog, eu também escrevi “at a crossroads,” razoavelmente curto, sobre como minhas lutas profissionais, criativas e emocionais estavam interligadas. Por último, “at-a-distance,” a tentativa mais longa, ampla e ambiciosa até agora, de cruzar teoria e experiência, uma bagunça cheia de potencial (com uma menção inesperada à Taylor Swift).

Antes que a seca atingisse o meu Substack, também consegui fazer por lá algumas coisas das quais me orgulho. Chasing Ideal Types mostrou como minhas perspectivas filosóficas e sociológicas atravessam minhas experiências, e me ajudou a lidar com algumas rejeições. Like a Polaroid capturou diferentes facetas dos motivos pelos quais tenho tido dificuldade para escrever, com mais detalhes e espaço para divagar do que este ensaio atual permite. Em “Nurtured by Ravens,” minha newsletter favorita, compilei trechos de coisas que escrevi sobre meu término, especialmente reflexões sobre a interconexão de tudo, e como ela tanto me abençoou quanto me falhou. Até certo ponto, terminar e publicar esses textos realmente fez com que eu me sentisse mais contente comigo mesma e com o estado da minha vida, ainda que só por um momento.

Eu também experimentei com outros métodos e mídias para expressar minhas ideias e sentimentos. Tanto a Arte quanto as Ciências Sociais me foram úteis neste tempo. Você pode ler mais sobre os projetos nessas imagens aqui.


Minha simpatia sem fim pela Taylor talvez estrague um pouco da minha credibilidade, mas continuo com a impressão de que nós duas estamos trilhando um caminho parecido, ainda que os detalhes das nossas questões sejam completamente diferentes — ela é a maior estrela do mundo, quebrando recordes e se preparando para casar, eu sou a que precisa se preocupar em ter dinheiro para as compras do mês. Mas uma das grandes funções sociais de uma celebridade é se tornar um dispositivo narrativo, um vocabulário público para que pessoas comuns discutam coisas da vida. A mirrorball mais uma vez refletiu minha própria imagem de volta para mim, e eu encontrei algo como resposta. Ao mesmo tempo, por ora, a forma como ela se enxerga no mundo não é a referência que eu quero para mim. Como fã e como escritora, mantenho o meu direito de achar que ela não foi completamente honesta nesse novo lançamento. Mesmo assim, continuo aqui, usando minha pulseira da amizade quase todos os dias, não tanto por ela, mas por todas as outras coisas que ela significa para mim: um lembrete de tudo que fiz para honrar minha juventude, para continuar vivendo com o mesmo coração.

Quanto ao meu bloqueio criativo (ou seja lá como chamar minha crise semântica), acredito que ainda vai demorar até que eu deixe essa temporada no passado. As coisas levarão o tempo que precisam (inclusive este texto, publicado quase duas semanas depois do planejado); eu nunca fui paciente, mas aprendi a ser mais compreensiva. Quanto mais envelheço, mais alguns dos meus problemas parecem ser as perguntas necessárias ao longo do caminho para ser eu mesma. Talvez minhas lutas com sentido e controle nunca desapareçam. Continuo brigando com Deus todos os dias, alimentando a ideia de que talvez eu consiga arrancar alguma soberania de Suas mãos, se me esforçar o bastante. A única esperança para uma controladora é ceder um pouco; se não consigo fazê-lo pela minha paz de espírito, talvez o faça porque preciso alcançar o tipo de honestidade de quem admite a derrota, para lapidar meu ofício e honrar minha vocação. Acreditei que um texto poderia redimir os meus tempos difíceis porque acreditei, acredito, na importância da tarefa de escrever. Mesmo que eu nunca alcance exatamente o magnum opus que imaginei, vou continuar tentando realizar alguma coisa.

Meus agradecimentos à Ashley Chong, minha editora de confiança, e às amigas com as quais eu passei cerca de 200h discutindo esse álbum (e que também tiraram tempo para ler as primeiras versões deste texto): Gésily, Bruna, Gabriela, Rayane, Thaines, Esther, Guilherme, Luiza, e minha irmã Julia.

knock on wood

From the vault. Written in October 2022.
Based on a true story.

She had worked late and spent most of her Saturday trying to recover from the burden of doing overtime five times a week. She was highly ambitious, but very simple at heart, and content with as little as buying herself a new book, and something tasty for dinner. Even though she had never been to that particular library, making it hard to feel completely at home and familiar with the surroundings, the weather was nice and her spirits were high.

She made her way through the shelves until spotting titles about feminism. His eyes had been following her since the moment that she walked in. His poor eyesight made it difficult to see what books she was looking at, but he could take a fair guess, he supposed. There’s very little you can learn about someone from the books they look at, but most of the magic of sitting in a bookshop is the belief that you can. She looked pretty — but the world is filled with pretty girls. She also looked strong, or so he thought, and he wondered if that was because of the books he assumed she was looking at. He could see her profile and the way the tip of her nose made her eyeliner look sharper — or was it the other way round? 

He was an anxious guy with an inclination to FOBO — Fear Of The Better Option. Having wasted too much time overthinking all of his decisions, he developed the habit of outsourcing everything to the universe; instead of placing on himself the burden of thinking about anything at all, he would just write all the conceivable options on paper, and then follow the instructions of the one he picked with his eyes closed. It didn’t always seem right, but he was committed to this system. He took the small block of purple post-its inside his pockets and, staring at the tip of her nose from afar, wrote down all of the things he could do at that moment. He could go up to the girl and introduce himself, or ask about the book that she was reading, or wait by the door until she was about to leave, or wait by the cashier and join the payment line at the same time as her. He folded them neatly, to make sure he wouldn’t be able to tell them apart just by looking, and tossed them inside his pocket. 

After taking a deep breath and saying a prayer, he was ready to find out what would come next, so he closed his eyes. It was only for a second, just enough time to draw the results but, somehow, she was already gone when he opened them again. Being stared at made her very nervous. She fled the building, without the book, and went out to find a vegetarian bowl she could have for dinner. He stood up to see if he could catch her but he wasn’t sure that was the best option at the moment. Before he wrote a new set of possible pathways on his little purple post-its, she was already sitting and waiting for her order, thinking about the book she didn’t take and about the guy she didn’t speak to. On the way home, he played with the little fateful folded papers inside his pockets until the sweat and oil from his hands began to melt them away. They won’t ever see each other again.

Photo by Clay Banks on Unsplash.

minha música (esquecida) favorita

Você é do tipo que gosta mais das músicas que são esquecidas no churrasco da discografia do seu artista favorito? Eu também.

For an English version, click here.

Eu sou uma grande fã de K-pop. Não tem tanto tempo assim, mas ao longo dos últimos anos eu me tornei realmente apaixonada pelo mercado de idols, ao ponto de estar ativamente envolvida em produzir conteúdo, e até material acadêmico, a respeito. A razão pela qual eu gosto tanto? Bom, é mais difícil de explicar do que o que cabe em um parágrafo [mas você pode ler sobre isso em outros textos meus], mas, do meio de todos os diferentes conceitos, performances, coreografias, vlogs e programas de rádio feitos por rostinhos bonitos vestindo roupas bonitas, eu recebo música. E eu amo música, e, por aqui, eu sempre encontro música nova pra aproveitar. 

Já que você está aqui, já escutou a melhor música do ano de 2021?

Um dos meus grupos favoritos se chama NCT 127. Eles são um grupo de 9 membros, que debutou em 2016 sob a SM Entertainment, uma das gigantes da indústria. Eles fazem parte de um grupo maior, chamado apenas “NCT”, que tem 23 membros divididos entre grupos diferentes – e um deles é o 127. O NCT tem um conceito rotacional, que pode ser difícil de explicar pra quem é completamente novo (mas que é a forma mais simples de explicar as fotos com dúzias de rapazes que o Google te mostra quando você pesquisa o nome deles). De qualquer forma, a coisa importante é que o  NCT 127 é um grupo com música excelente. Eles são conhecidos por testar os limites e as tendências do mercado – o que significa que seus lançamentos nem sempre são unanimidade, mas tudo que eles lançaram nos últimos seis anos resultou em uma discografia bastante interessante. 

Os 23 membros do NCT, durante as promoções do projeto “NCT 2020”.

Minha música favorita do NCT 127 se chama “100”. É parte do primeiro álbum single em Japonês do grupo, Chain, lançado em 2018. Os créditos são do cantor-compositor Andrew Choi, que também faz parte da SM Entertainment, e do compositor Yunsu (SOULTRiii), que já trabalhou com outros artistas da SM (como o trabalho solo do cantor Baekhyun, membro do grupo EXO, e meu grupo favorito de todos, SHINee, sendo creditado pela excelente “Chemistry” no álbum The Story of Light pt. 2 (2018)). O álbum single em si é incrível, com cinco músicas fortes que falam muito do potencial do grupo, do primeiro ao último dos seus 18 minutos de duração. “100” é a última faixa, a cereja do bolo; é excepcional, com um instrumental que é tão pernicioso quanto é previsível, mas sem deixar de ser interessante, e uma ponte que prepara o terreno perfeito para uma das minhas codas preferidas em uma música pop. Eu já escutei “100” dezenas de vezes, e em nenhuma dessas vezes eu cheguei até o fim da música sem sentir um arrepio que fosse. 

Tem uma outra coisa muito importante a ser dita sobre essa música, que é o fato de que ela nunca foi tocada ao vivo. Nunca. 

A maioria dos grupos de K-pop tem atividades bem sérias no Japão – o segundo maior mercado fonográfico do mundo é a opção mais próxima e vantajosa para uma expansão além do público doméstico. Até o momento, o NCT 127 só completou uma turnê (em parte por conta da pandemia), mas, mesmo assim, dos 44 shows que eles fizeram pela Ásia, Europa, América do Norte e Latina, 14 foram no Japão. E, mesmo assim, nessas 14 datas, para uma audiência total de 74,000 pessoas, em nenhum momento eles apresentaram “100”. Eles apresentaram, sim, outras músicas da sua discografia Japonesa que estão entre minhas favoritas, como “Dreaming” (também do álbum single Chain), e “Kitchen Beat” (do seu excelente primeiro álbum em Japonês, Awaken (2019)). Mas, nada de “100”.

Eu sou um pouco dramática quando falo de canções que amo muito escutar; existem aquelas que são para se consumir às garfadas, sendo repetidas infinitas vezes, e existem aquelas que são para se consumir com moderação, porque elas causam uma euforia muito intensa, e deixam um gosto persistente na boca. “100” está mais perto do segundo tipo; eu não gosto de ouvi-la quando não tenho condições de estar completamente presente, porque faço questão de experimentar tudo que ela me oferece, ainda que seja só uma vez. Aliás, é por isso que eu sou fã de K-pop; eu aprecio as performances, as personalidades, mas, em última análise, eu preciso da minha porção sônica todos os dias, e meus grupos favoritos me mantém feliz e bem alimentada, nesse sentido. E a analogia com comida é muito boa, não é? Porque nós tomamos café da manhã, almoçamos, fazemos um lanchinho da tarde, jantamos, e sabemos que nem toda comida cabe em toda refeição. “100” se parece mais com a sobremesa do almoço. A porção é menor do que aquela que eu comi imediatamente antes, mas pode ter certeza de que tudo que eu fiz primeiro foi antecipando aquela boquinha de 3 minutos e 42 segundos. 

Como eu disse, eu sou um pouco dramática falando das músicas que eu realmente amo ouvir. Então, sim, “100” é sempre uma experiência para mim. E, toda vez que eu a escuto inteira mais uma vez, e chego ao final de novo, e me lembro que nunca houve uma performance ao vivo, e que o 127 talvez nem se lembre dela, pra começo de conversa… Eu não consigo não pensar sobre como a experiência da música existe apenas entre os alto-falantes e eu. Os produtores, compositores, distribuidores, e o 127, claro, providenciaram o serviço, mas eles não me conhecem, e sequer precisam se ocupar do fato de que eu gosto tanto dessa música, porque, sejam 10 ou 1000 as vezes que eu aperto o replay, eles podem receber um pouquinho a mais ou menos por stream, mas absolutamente zero feedback sobre essa pobre Brasileira de 26 anos que sempre precisa explicar que ela está falando do NCT 127, e não do SuperM, quando diz que ama “100”.

Este é apenas um exemplo de vários outros que eu poderia tirar da minha carreira de amar B-sides mais ou menos esquecidas, como “Live-in-Skin” do Foo Fighters, “Paradise” do BTS, ou “Signal” do f(x). Não é de propósito, tanto quanto não é minha culpa que eu me apegue à músicas que quase nunca vão parar em setlists. É uma pena, porque eu amo performances ao vivo, e a maioria das músicas soa melhor fora do estúdio, flutuando sobre e através das cabeças do povo, o verdadeiro lugar ao qual elas pertencem. Do meu lado do mundo, eu raramente, ou nunca, tenho chances de ver meus artistas favoritos, então esses vídeos de performances são a melhor forma (ou a única) para que eu experimente uma fração da sensação de estar sob as nuvens sônicas que eu mais desejo provar. Não quer dizer que eu nunca tenha tido um pouquinho de sorte – uma vez, em 2018, quando minha banda favorita de todos os tempos, Foster the People, trouxe de volta aos palcos uma música de 2011, “Broken Jaw”, uma faixa bônus que sequer estava em plataformas de streaming, e que eu amava, mas que não havia sido incluída em setlists havia vários anos (e bem à tempo da minha primeira vez os vendo ao vivo). E, sim, eu chorei um pouquinho, exatamente o que você esperaria de alguém que é um pouco dramática sobre as músicas que realmente ama escutar, mas que, mesmo assim, sabe bem que a experiência emocional intensa que ela associa à ouvir essas músicas é quase totalmente separada das pessoas que trouxeram a música à existência. 

Foster the People apresentando “Broken Jaw” ao vivo no SXSW, em 2011. Assisti essa performance incontáveis vezes desejando viver a mesma experiência.

Claro, isso não é uma discussão sobre as formas como essas músicas só existem devido às pessoas que as escrevem, produzem, cantam e distribuem, mas sobre a distância intransponível que existe entre nós e essas pessoas, que se manifesta em como nos sentimos sobre as coisas que apreciamos, como as consumimos, e quão livremente elas transitam pelas nossas vidas e dispositivos sem grandes conexões com o outro lado além de uma foto na capa, ou créditos impressos em papel. Eu já dei replays infinitos em músicas de cantores sobre quem eu não sei nada além do nome artístico. De certa forma, pelos álbuns, vídeos e tracklists em serviços de streaming, os alto-falantes e telas são muito menos como links, e mais como espelhos, me refletindo para mim mesma. Mesmo que sua superfície se tornasse macia como gaze, mesmo que eu pudesse chegar ao outro lado, eu não encontraria cantores e compositores esperando por mim, mas só eu mesma, sozinha com todas as coisas que tornam aquela experiência minha, todas as coisas que cobrem a distância entre eu e meu reflexo. 

E isso é ótimo! É o que torna isso válido e apreciável, porque, se eu apertar o play, posso ouvir a voz do Doyoung quantas vezes eu quiser, ainda que ele esteja doze fuso horários à minha frente, em algum lugar de Seul. Não é uma performance ao vivo, mas eu ainda assim posso voltar para “100”, “Live-in-Skin” e “Signal”, para “Knock on Wood”, de Red Velvet, e até para “Broken Jaw” – que agora, finalmente, está nas plataformas de streaming, e posso curti-la com facilidade em todas as versões que eu gosto. Por outro lado, minha favorita absoluta do FTP, “Tabloid Super Junkie”, uma faixa exclusiva de pré-venda do Supermodel (2014), segue sendo parte do time de B-sides esquecidas. Mas, pra ser muito franca, eu nem me importo tanto assim. Entre eu e os alto-falantes, eu já fiz a música tão minha que não sei se preciso de mais alguma coisa para torná-la melhor do que ela já é. E talvez seja por isso que seja dela que eu goste tanto. 

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#2. o som que a estrela faz (reprise).

       Este texto é o segundo de uma série.

     Minhas primeiras músicas favoritas foram “True Colors”, “Clocks” e “I don’t wanna miss a thing”. Cada uma chegou até mim de formas diferentes – por CD, por rádio, e por uma fita de VHS que meus primos mais velhos assistiam o dia todo na casa da nossa falecida avó. Dos 4 aos 7 anos, muita coisa muda pra uma criança, mas algo de constante era que, nessa época, eu não entendia nada de inglês ainda – nem o mínimo que me permitisse entender o que as letras dessas músicas diziam. Eu só entendia os sons, e era muito suficiente; eu era apaixonada pela forma como elas soavam, e meu peito queimava com elas.

     Lá pelos meus 11 anos, eu ainda não falava inglês, mas escutava músicas japonesas o dia todo. Aos 14, minha banda preferida era alemã. Nunca aprendi a falar japonês, mas nunca deixei de escutar essas mesmas músicas dos meus 11 anos, mesmo que até hoje eu nem sempre saiba recitar a letra de cor. Alemão, por sorte, eu aprendi, mas, antes disso, eu aprendi a repetir foneticamente os sons das canções, como fazia com as minhas preferidas em japonês, porque me importava saber cantar, saber participar delas, enquanto eu escutava. Eu era apaixonada pela forma como nós soávamos juntas, e meu peito ainda queima com elas.

     Hoje eu tenho 24, mas tinha 23 ainda quando comecei a montar minha primeira playlist de músicas coreanas. Pra quem me conhece há muito tempo, era só mais uma das minhas muitas fases, mas não é que cada fase, mesmo que vá passar, importa pra caramba, antes que passe? Acho que hoje já tenho bem mais que uma dezena, mas a questão não são os números. A questão é que elas me tocam todos os dias, da mesma forma que outras músicas cujas letras eu desconhecia me tocavam, através de suas melodias, suas batidas, e de como suas vozes soavam, fazendo meu peito queimar com elas. Elas se comunicam comigo.

     Pra uma pessoa que fala muito, qualquer coisa vira um diálogo, mesmo que sejamos só eu e uma canção conversando, dentro dos limites dos meus fones de ouvido. Às vezes, eu respondo com meu silêncio, às vezes com movimentos dançantes, ou produzindo pensamentos na velocidade da luz, ou criando uma playlist nova e implorando que todos os meus amigos escutem, pra saber se eles também conseguem escutar o que eu estou ouvindo. Como se, por trás de algumas faixas, existisse um outro som, que faz sacudir o fundo das minhas tripas, e puxa elas de dentro pra fora, até que trava no coração, e meu corpo inteiro se sacode. Quando o Sublime se revela pra mim, pelos ouvidos, ele escorre pelos olhos, pelos braços, pelos dedos, como se eu fosse Santa Teresa em êxtase, como se fosse a primeira vez todas as vezes.

     Já tem muito tempo que eu tento explicar qual é o som que a estrela faz, e talvez eu tenha demorado tanto a entender porque achava que esse som vinha de dentro, porque se parece muito com uma queimação incessante no peito [já escrevi sobre isso uma vez, em 2012]. E é a mesma queimação que eu senti na infância, quando descobri minhas primeiras canções preferidas, e todos os anos seguintes, enquanto eu cresci e deixei que muitas músicas me tocassem e me construíssem. A confusão era, principalmente, um problema de referência, porque eu achava que deveria olhar pra dentro pra encontrar uma estrela, quando, na verdade, eu tenho certeza que todas estão no céu, do lado de fora, bem distantes de mim. Como a queimação no meu peito, o som que a estrela faz, que vem de dentro, é apenas resposta de outro som, aquele que ecoa por todo o Universo, desde o dia em que o Criador bradou que houvesse Luz.

     O Sublime é, antes de tudo, um convite à humildade. O som que a estrela faz se parece muito com o som do meu coração apertado batendo por entre os meus dedos, sendo atraído para fora, tentando convencer todo o meu corpo a virar do avesso perante à constatação permanente de que eu sou muito, muito pequena mesmo, diante de toda a majestade que pode existir dentro dos acordes que formam uma melodia. É o som da imagem da Glória, da qual eu sou apenas um reflexo – tal qual a Lua, uma fiel testemunha.  Parece loucura pensar que qualquer canção pequena possa fazer ressoar em mim os sinos da Eternidade, mas isso faz parte da loucura de ser um fragmento de poeira gloriosa no Universo – como todas as coisas pequenas, elas fazem mais sentido quando você considera o todo. Existem os momentos em que a gente tenta se explicar, e existem aqueles em que a gente apenas senta, e contempla a manifestação da Glória. Selah.

     Photo by Ryan Hutton on Unsplash

    [fiz uma playlist com algumas das canções que me fazem ouvir o som que a estrela faz.]

Mas você gosta mesmo de BTS?

     “Mas você gosta mesmo de BTS?”

     Entre as muitas pessoas que me fizeram essa pergunta nos últimos tempos, minha preferida foi eu mesma, no diálogo imaginário que criei com meu eu aos 15. Foi nessa idade que eu fiz uma promessa solene de que nunca me renderia à “moda” do kpop, desde que Super Junior roubou metade dos fandoms dos quais eu fazia parte na época – da banda alemã Tokio Hotel, a paixão da minha juventude, e da fatídica banda brasileira de happy pop punk, Restart. Isso foi há quase dez anos.

     A segunda melhor reação que recebi ao BTS foi dos meus pais, que perguntaram se eu havia decidido voltar àqueles meus 15 anos, de calça colorida, Pe Lanza e Bill Kaulitz. Restart foi a última banda socialmente estigmatizada da qual eu gostei, antes que outros interesses e novas percepções ocupassem minha mente. Aos 16, eu consumia Glee diariamente, e comecei a me interessar por filosofia, política, o que me levou a consumir livros diferentes do que eu costumava ler até então. Terminei o Ensino Médio e comecei a faculdade de Arquitetura, e me reconectei com as histórias em quadrinhos. Com os anos, aprofundei minhas raízes e fundamentos cristãos, fortaleci minha teologia, conheci a história do punk rock e morei na Inglaterra, cercada de bandas indies e amigos que haviam sido emos.

     Não é difícil entender porque minha família, num primeiro momento, achou que gostar de uma boyband coreana era uma regressão, já que qualquer coisa que envolva garotos bonitos e fãs escandalosas não recebe muito crédito social. Eu provavelmente não teria me interessado por BTS se não tivesse passado por um período complicado e musicalmente intenso entre 2017 e 2018, acompanhado por doses cavalares de Foster the People, Twenty One Pilots, Joy Division, George Ezra, SWMRS e My Chemical Romance. Trabalhar no meu TCC foi um processo solitário, temperado por muitas horas de música, que me fizeram refletir sobre o quanto eu havia sido construída pelas coisas que havia escutado, muito mais do que eu já havia concluído até então. Eu reconhecia, nas minhas crises e respostas emocionais, traços que haviam sido retirados diretamente de canções que eu escutava há 10, 12 anos, que ficaram gravadas em mim, mesmo depois que joguei meus CDs fora. Apesar das coisas preciosas que descobri, algumas foram surpresas negativas, que eu tenho tentado arrancar do meu subconsciente, e que me fizeram questionar quais são as coisas que não só eu, mas os adolescentes desta época, têm escutado.

     Eu provavelmente também não teria começado a gostar tanto de BTS se não tivesse começado a consumir TV coreana, que me fez ganhar simpatia pela cultura pop do país, e pela língua. Mas o ponto de virada definitivo foi o dia em que, falando dos meus doramas [novelas coreanas] no Twitter, um pastor do Rio de Janeiro compartilhou comigo sua surpresa ao descobrir, em favelas, que a febre entre os adolescentes era o k-pop. Eu tinha uma vaga noção de que o BTS já havia discursado na ONU, e subido ao palco dos Grammy Awards, mas saber que um grupo cantando em língua coreana conseguia entrar em um dos locais e corações mais socialmente vulneráveis do país despertou minha curiosidade.

     Uma coisa que eu sempre considerei maravilhosa sobre a internet é a possibilidade de que assuntos sejam discutidos ativamente diante dos nossos olhos sem que nós sequer precisemos conhecer aquilo de que se está sendo falado. Admito que meu distanciamento era metade desinteresse, metade um desprezo quase elitista (uma reprodução do mesmo desprezo que outras pessoas demonstraram por mim quando relatei que havia gostado deles). Até então, eu sequer havia me dado ao trabalho de reparar os sinais de que aquilo era muito maior do que eu dava crédito. Jogar “BTS” no Google foi o primeiro passo pra um mundo de número absurdos, feitos extraordinários, e um exército de fãs que é potencialmente a força construtiva/destrutiva mais poderosa do planeta, centralizados em torno de 7 rapazes de aproximadamente 1,75-1,80 metros de altura, cada, juntamente com sua agência e produtores, a Big Hit Entertainment.

     BTS foi a forma reduzida que os fãs internacionais encontraram pra se referir ao Bangtan Sonyeondan, ou Bangtan Boys“Garotos à Prova de Balas”, formados a partir 2010 e lançados em 2013. Neste artigo de Setembro de 2018 para o Vox, Aja Romano descreve bem o processo que os transformou num fenômeno global. O grupo certamente não teria se tornado o que se tornou sem seu poderosíssimo fandom, o ARMY. Existe espaço para discutir muito aqui sobre os limites da idolatria, e a cultura tóxica do fã, mas eu queria me concentrar mais no fato de que, antes de tudo, este exército de fãs assumiu a postura de trabalhar agressiva & eficientemente para promover os garotos devido ao fortíssimo senso de empatia que eles são capazes de gerar.

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BTS no Grammy 2019. Da esquerda para a direita: V/Kim Tae-hyung (1995), Jungkook/Jeon Jeong-guk (1997), Jin/Kim Seok-jin (1992), RM/Kim Nam-jun (atrás, 1994), J-Hope/Jeong Ho-seok (abaixado, 1994), Jimin/Park Ji-min (1995) e Suga/Min Yun-ki (1993). Fonte: Getty Images [romanização revisada]

     A proposta de seu produtor Bang Si-hyuk era de criar um grupo que se conectasse com o coração do público e fosse capaz de quebrar os paradigmas de perfeição e divindade que fazem parte da imagem dos idols coreanos. Quase que uma sacada messiânica do mercado, em que você tira deus do céu e o coloca caminhando sobre a face da terra – ele queria um grupo de working class heroes (ou youth class heroes), que oferecessem um ombro e te dissessem, com suas músicas, que entendem suas dores, seus sofrimentos, porque fazem parte deles também [não é meu objetivo falar sobre a indústria do kpop como um todo neste texto, mas vou deixar links recomendando outras leituras, no final]. O primeiro desafio foi juntar um grupo de rapazes talentosos que pudessem contar histórias e representar sua geração. O segundo desafio, claro, foi provar que isso era real.

     Suas músicas contam histórias sobre a realidade e os sentimentos dos jovens, em um nível local (na Coreia do Sul), mas com um apelo global. Fazem críticas sociais incisivas, falam de bullying, sonhos, ambições, amor-próprio, família, amizade, medo e esperança, e refletem sobre a constante luta de entender quem somos, e qual nosso lugar no mundo. Seus clipes e storytelling fazem referências à psicologia Junguiana, Hermann Hesse, iconografia greco-romana, e seus álbuns são organizados em ciclos, com histórias em uma linha do tempo paralela. Pra completar, cada um dos três rappers do grupo lançou mixtapes próprias (RM, J-Hope e Suga, sob o nome Agust D), buscando se expressar individualmente como artistas.

     Quando eu caí no limbo das suas entrevistas no YouTube, e dos muitos episódios de Run! BTS (na plataforma VLive), fui tomada por um sentimento generalizado de que deveria ter alguma coisa errada com as coisas que eu estava assistindo, porque eles comunicavam muita verdade (e eu naturalmente desconfio da toda e qualquer verdade na indústria pop). Mesmo tendo ciência das estratégias da indústria pop pra manipular a realidade, e oferecer uma alternativa maquiada e financeiramente conveniente, a impressão que eu tinha era de que, a despeito disso tudo, havia algo de honesto que permeava o que os rapazes fazem e são. Não é muito difícil saber que existem muitas pessoas interessadas em lapidar a imagem pública deste grupo para que ganhe os corações de seus fãs de forma sem precedentes. Por isso, se faz necessário voltar ao início de todas as coisas – porque, para além de ser uma iniciativa de uma pequena agência, e de um produtor renegado, o BTS se organizou a partir do seu líder, Kim Nam-jun – o RM – , um rapper talentoso e jovem brilhante, e certamente o principal responsável por cultivar entre os 7 rapazes os valores e o senso de responsabilidade que os torna um grupo tão singular. Nos bastidores da indústria musical, eles são reconhecidos por serem gentis, atenciosos e humildes, a despeito do quão grandes se tornaram.

     A grande tragédia do clichê é que nunca deixa de ser verdade – com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Talvez tenha sido a atitude de ousadia perante a tarefa de influenciar, misturada com uma humildade diante da proporção que a mensagem tomou, que me fez entrar pro grupo das pessoas que torcem muito pelo sucesso genuíno de tudo que os Bangtan Boys fazem. Eu poderia argumentar que estou muito velha pra vestir camisetas ou acampar nas filas dos shows, mas isso nunca foi muito minha praia; a questão é que eu cresci me reconhecendo como artista, e minha coisa favorita do mundo, ao longo dos meus 24 anos, tem sido descobrir os corações por trás daquilo que eu admiro. Nem sempre as descobertas são positivas, mas, neste caso, foi uma feliz surpresa, mesmo pra mim, que sempre acreditei que Deus poderia agir de formas imprevisíveis. Escutar coisas que eles têm a dizer sobre como se enxergam como pessoas no mundo foi um alento em dias em que eu não queria escutar mais ninguém.

     Apesar da intensa desconstrução do elitismo intelectual e cultural que eu já havia experimentado até então, uma parte de mim ainda tratava os fenômenos mais populares de cada tempo como aquilo de menos digno que a cultura de uma época tinha para oferecer – talvez uma consequência dos anos em que consumi Crepúsculo, e me arrependi? É certo pra mim também que eu fugia de certos fenômenos por conta do estigma de ser vista como mais uma dessas garotas “vazias” que gostam de gritar por qualquer coisa que tenha garotos bonitos, mas, ao mesmo tempo, quando eu descobri o tesouro escondido em BTS, eu quis muito contar pro mundo que eles estavam errados. Claro, nós todos temos todo esse direito de não nos interessar por certas coisas, e de desistir de outras, e talvez eu só esteja ainda sob o impacto de ter saído da minha zona de conforto e ter encontrado algo de valor.

     E, claro, existem muitas coisas que precisam ser pontuadas em afirmações tão emotivas quanto as que eu acabei de fazer. Transformar mensagens importantes em um produto é um dos grandes dilemas da indústria dos nossos tempos, e o quão genuíno é converter valores importantes em estratégias de mercado. No fim das contas, esses rapazes ainda viram objetos nas mãos de companhias, são embranquecidos nos seus vídeos e fotos promocionais, lançam canções com títulos convenientemente ligados ao marketing de grandes grifes, fazem lip sync, e caem em contradição. Eu talvez precise confessar que nem sempre gosto de todas as músicas deles, e que existem muitos grupos que eu considero musicalmente melhores, passando até mensagens melhores (já ouviu falar de SWMRS?), mas o processo de descobrir BTS foi o processo de descobrir um reflexo meu em algo que eu sequer sabia que poderia me refletir. Encontrar algo precioso pra mim naquilo que eu considerava menos importante.

     Acho que me toquei da relevância do que eles fazem em um dia particularmente ruim, em que eu fui pra academia pra tentar fugir de mim mesma, correndo na esteira. Não escutei BTS, mas escutei Welcome to the Black Parade [2006], do My Chemical Romance. Já perdi as contas dos anos e momentos em que essa música me acompanhou, e, naquele dia, mais uma vez, ela gerou em mim o sentimento do qual eu precisava para fazer as pazes comigo mesma – “on and on we carry through the fears […] do or die, you’ll never break me, because the world will never take my heart”. Por coincidência, hoje é aniversário do Gerard Way, frontman da banda e cantor desta canção; toda vez que escuto suas músicas, sou tomada por uma sensação de que os sons que eles produziram vão continuar ecoando em mim por muito tempo. As turnês passam, as camisetas desbotam, os CDs se quebram, o dinheiro gasto vai embora, e a maioria das memórias também – aliás, coisas como perder um show importam cada vez menos conforme os anos passam, e manter isso em mente vai te ensinando a ser um consumidor mais consciente. O tempo ensina que a verdadeira grande estrutura é o que se pode construir no coração, e que os palcos, arenas e estádios são muito pequenos perto disso.

     O que você , escuta, assiste, consome, te constrói, e eu na verdade ainda teria (tenho) muitas outras coisas pra falar sobre isso. Eu deveria mencionar que, desde que incluí k-pop nas minhas manhãs, meu humor melhorou exponencialmente, e assistir entrevistas e doramas me fez começar a apreciar minhas bochechas de uma forma que meus ícones ocidentais bichectomizados nunca foram capazes. Também, que a coisa mais importante que eu fiz em 2018, além de me formar, foi contar pro Mark Foster como Deus havia me dado uma das músicas do Foster the People de presente. Eu te garanto que, se eu tivesse filhos agora, eles estariam escutando BTS comigo, dançando cedo enquanto lavo a louça, faço minha corrida, ou aspiro meu quarto. Aprendendo a pronunciar fonemas coreanos pra cantar sobre amizades e amores doces, ou pra apreciar o próprio sotaque (algo que também aprendi com BTS), ou conhecendo a cultura de honra que existe na Coreia. Enfim. Em três dias, eles lançam música nova, que pode ser horrível, ou excelente, e logo depois vem os anos, e o momento deles passa, como muitos outros passaram. Eu torço muito para que todos eles tenham futuros felizes; que colham bons frutos do que plantaram, mesmo nos lugares em que os olhos não alcançam. E que continuem crescendo e descobrindo as coisas ainda maiores, e melhores, e mais importantes, que a vida tem a oferecer.

     E, claro, levantando o comentário específico com aquilo que eu acredito que seja a coisa mais preciosa do Universo, o Evangelho de Cristo Jesus; fico às vezes pensando na vida como um grande jardim de flores cheias de pólen, e insetos que voam pra todos os lados. Nós podemos argumentar que mensagens “positivas” que não possuem o Evangelho não tem valor – já que qualquer bem do qual o ser humano seja capaz ainda assim é insuficiente pra salvar sua alma – , mas eu nunca seria capaz de desprezar uma mensagem, porque nunca seria capaz de prever os caminhos misteriosos que as palavras fazem pela mente e pelo coração das pessoas. Em algum lugar dessa rocha gigante em que nós vivemos, 1 entre quase 8 bilhões de pessoas pode estar sendo alcançada por uma voz inesperada, e gerando algo que vai mudar sua vida pra sempre. Só isso não faz tudo valer a pena? Eu sempre penso que sim.

@luisadoamaral no Twitter [e no Instagram].

[imagem de capa: LOVE_YOURSELF 轉 ‘Tear’ concept photo]

Outras leituras [em inglês]: