O que encontramos do outro lado das ondas

English version here.

Anos depois de lançar Rubber Soul (1965) com os Beatles, John Lennon contou que a faixa “In My Life” foi a primeira que ele “conscientemente” escreveu a respeito da própria vida. Até aquele momento, as letras das músicas que escrevia eram apenas peças secundárias do processo de construção pop, ainda que ele fosse pessoalmente fascinado, desde a infância, pelas riquezas e potenciais de jogos de palavras – que ele lia nos trabalhos de Lewis Carroll – e guardava o hábito de escrever poemas e contos que recontavam episódios da sua vida através das lentes do absurdo, para entreter-se e aqueles à sua volta. Em 1964, Lennon chegou a publicar uma coletânea desses trabalhos, intitulada “In His Own Write”, o que levou à situação em que um jornalista, chamado Kenneth Allsop, perguntou por qual razão suas canções não tinham aquelas mesmas qualidades literárias, ou porque ele nunca fazia referências à memórias e experiências pessoais.

Trecho da página 319 do livro “The Beatles as musicians : the Quarry Men through Rubber soul” de Walter Everett (2001). Do Internet Archive. “In My Life” John Lennon: “Eu acho que ‘In My Life’ foi a primeira canção que eu escrevi que era realmente, conscientemente sobre minha vida, e foi motivada por um comentário que um jornalista e escritor na Inglaterra [Kenneth Alsopf] fez depois do lançamento de In His Own Write… Ele me disse “Por que você não coloca um pouco da forma que escreve no livro, daquele jeito, nas músicas? Ou por que você não coloca algo sobre sua infância nas músicas?” Castigado, Lennon se pôs a trabalhar, descrevendo a vista ao longo do trajeto de ônibus que ia de sua casa em Menlove Avenue até o centro da cidade:” [Tradução livre]

A situação foi o suficiente para impulsioná-lo a tentar; o tempo acabou se revelando muito oportuno porque, a despeito do fato de que, em si, Lennon já possuía as sensibilidades líricas necessárias, os anos vindouros acabariam honrando Rubber Soul como o álbum que representou uma transição fundamental na história da banda, passando do frenesi da Beatlemania para o processo de redefinição dos limites dos sons do pop que ocupava o topo das paradas. Os temas por trás de “In My Life” são bastante simples – nostalgia e saudade, as coisas que ficam porque vale a pena guardá-las, mesmo quando o resto já se reduziu a nada. Mesmo que não fosse, de fato, um dos singles promocionais do álbum, acabou se estabelecendo como uma das músicas mais amadas da cultura pop; o imperativo do tempo, nossa absoluta falta de controle sobre ele, é um dos maiores, senão o maior, tema recorrente da história criativa da humanidade, dos que desperta nossas qualidades mais elevadas, e nossas dores mais profundas. São músicas como “In My Life” que dão às coisas mais assustadoras uma dimensão manejável; elas dão escala à passagem dos dias e anos, articulando a sensação esmagadora de não poder voltar atrás até que ela pareça pequena o bastante para caber num verso. 

De certa forma, este é o maior triunfo que a música pop poderia almejar – a força que sustenta gerações sobre o cruzamento entre letra e música, porque a forma como algo soa faz soar algo dentro de nós também. Claro, estou sendo poética agora porque, neste momento, também sinto algo esmagador dentro de mim, e não quero pensar muito nas camadas sócio-políticas econômicas e culturais das coisas. Eu sei que o tempo não é o mesmo para todos, e que sequer vivemos todos a mesma dimensão das 24 horas de cada dia. Mas, mesmo assim, conforme os anos vão, e paramos para contemplar o que já foi, o peso da passagem só faz com que certos clássicos fiquem ainda mais fortes, continuando tão significativos e relevantes como nunca, ainda viajando pelo imaginário de novas gerações, e trazendo à existência novas realidades. Por exemplo, quando o rapper Coreano B.I escolheu nomear os Beatles, especificamente Rubber Soul e “In My Life”, quando foi perguntado sobre sua primeira inspiração musical, numa entrevista promocional com o Buzzfeed para seu primeiro álbum como solista, em 2021. 

Kim Hanbin, 25 anos de idade. 131Label.

No decorrer de sua carreira que, aos 25 anos de idade, já cobre um período de quase 13, B.I (nascido Kim Hanbin) falou várias vezes sobre a importância de filmes e poesia em suas composições. Ainda jovem, ele descobriu que, através de outras obras, particularmente cinematográficas, ele podia experimentar e descobrir como articular coisas que não havia vivenciado por conta própria, de formas que ainda poderiam produzir imagens vívidas, e suscitar sentimentos fortes de seus ouvidos – sua maior aspiração como artista. Em suas próprias palavras, o trabalho dos Beatles, especificamente suas melodias mais tranquilas, e a carga de significado em suas letras, eram uma grande fonte de inspiração. Quando ele escolhe citar uma música como “In My Life” como fundamental no processo de se tornar o artista que ele busca ser, eu posso imaginar que talvez ele esteja se referindo à forma como a canção traz à tona uma linha de pensamento da saudade de uma forma tranquila, quase jubilosa, sem diminuir a carga dos baixos, mas fazendo com que os altos pareçam uma realidade possível. Mais que qualquer outra coisa, não é sobre um anseio que te deixa emperrado no que passou, mas sobre a liberdade de seguir em frente com confiança, carregando consigo as memórias mais valiosas, como um tesouro. 

Apesar de já atuar como rapper desde 2009, sua carreira como solista não começou oficialmente até o lançamento da música “illa illa”, dia 1º de Junho de 2021, carro-chefe de seu primeiro álbum WATERFALL, lançado sob seu próprio selo. Antes disso, ele já tinha reconhecimento como líder e principal liricista do grupo iKON, entre 2015-2019. Seu trabalho lhe rendeu um prêmio de “Compositor do Ano”, em 2018, depois que a canção do grupo “Love Scenario” se tornou um mega hit na Coreia. Inspirada pelos dez minutos finais do filme La La Land (2017), é uma música que não soa particularmente feliz, nem triste. Ela se move em círculos, sem a força motor de uma estrutura que conduz a um grande clímax, optando por dar voltas em torno do refrão, tal qual a mente de uma pessoa que está se preparando para virar a página e deixar pra trás o que precisa ser deixado, mas fazendo o possível para carregar consigo as memórias que mais valiosas, como um tesouro.

Kim Hanbin aos 13 anos, já usando o nome “B.I”, em 2009, em um dos palcos para a música “Indian Boy” de MC Mong, da qual ele participou. MBC’s Show! Music Core, MBCKpop.

Existe uma divisa entre B.I, o líder de grupo e compositor por trás de “Love Scenario”, que vemos rodopiando em torno de memórias, com seus companheiros de grupo, no clipe da música, e B.I, o solista, emergindo do mar, sozinho, no começo do clipe cinematográfico de “illa illa”; esta, assim como aquela, também é uma música que não soa particularmente feliz, nem triste. O título em Inglês é uma palavra inventada, que muito se assemelha aos ideofones coreanos que representam o movimento ondulado das ondas. Em Coreano, se chama “해변” [haebyeon], que significa “praia”. Os primeiros versos, que, no clipe, crescem progressivamente como os sons de quando tiramos a cabeça da água, foram incorporados do poema “O Sabor de Doces e Praia” [사탕과 해변의 맛] do poeta Seo Yun-hoo – “existe uma praia na ponta das minhas mangas / por ter enxugado as águas que estavam escorrendo pelas minhas bochechas.” A escolha dessa metáfora bem específica dá estrutura à uma canção que é sobre ser engolido pelas ondas de um oceano feito das próprias lágrimas pesadas, salgadas e quentes.   

Eu passei alguns dos meus melhores anos escolares me dedicando a ler e dissecar poetas e sua poesia, mas algo sobre a natureza da música pop me faz preferir abordar composição de uma forma diferente. Separar minhas canções favoritas das pessoas que as escreveram com certeza me dá mais espaço para que eu me aproprie delas. Mas, como escritora, preciso admitir que fico feliz em poupar artistas de falar sobre coisas que eles talvez prefiram guardar. Para mim, a decisão de publicar ou não algo que escrevi depende muito de quão vulnerável eu me sinta – eu posso decidir guardar coisas pra mim na eventualidade de sentir que é fácil para que outros entendam do que eu estou falando, se for algo cujos detalhes eu prefira deixar no ar. Escolher se abrir diante das pessoas de uma forma que dê à elas a chance de especular é um ato de bravura. Nesse sentido, acho que o B.I é corajoso; quando “illa illa” foi lançada, ele ainda aguardava sentença num julgamento por acusações de tentativa de compra de drogas ilícitas em 2019. A política nacional sobre drogas da Coreia é bastante rígida. O processo foi a causa de sua saída de seu antigo grupo e agência.

Não se esqueça de ativar as legendas.

De forma semelhante à “In My Life”, “illa illa” descreve sentimentos e memórias vívidos que parecem específicos e detalhados o suficiente para serem fruto de experiências pessoais – a escolha de palavras tem aquele tipo de pungência que resulta de pensamentos que só passam pela mente de quem vivenciou certas coisas em primeira mão. Por conta disso, ambas as canções têm sua dose de subjetividade, mas ainda são conscientemente feitas generalizadas para que se encaixem com facilidade na vida de qualquer um. A visão original de Lennon era uma descrição de um trajeto de ônibus que ele fazia do seu bairro ao centro da cidade, mas ele preferiu descrever a trajetória dos seus próprios pensamentos através das memórias que ele tinha do lugar em sua mente. Ao escolher abrir a canção com a metáfora do poema de Seo Yun-hoo, que também funciona como o pré-refrão da música, B.I diz aos ouvintes exatamente onde ele se encontra no momento – e não é especificamente sob nem fora das águas, mas também não é à beira-mar. 

Talvez essa seja a razão pela qual o tema do oceano passa uma impressão revigorada aqui, mesmo que afogar-se numa piscina de lágrimas seja tão antigo quanto as aventuras de Alice no País das Maravilhas. Kat Moon (2021), para a TIME, escreveu que B.I foi além da “[tentação] de focar na natureza ilimitada do oceano na praia”; a reflexão é pessoal e, assim como a faixa segue em círculos em torno do pré-refrão e refrão, as metáforas são muito mais centradas no próprio corpo como início e fim de todas as coisas. O mar se encontra dentro, por dentro e pra fora da suas extremidades, até mesmo as ondas de memória que o atingem, indo e vindo e arrastando para longe tanto as coisas boas quanto as coisas más. Existe um sentido de antecipação, mas o clímax não é alto e estrondoso como uma tempestade, mas apropriado para os primeiros passos de alguém se ajustando para um recomeço. O ritmo caminha a passos firmes, gentis, e seguros. 

O resto do álbum WATERFALL é imperdível, na sua forma de contar uma história, ou várias. Logo antes de “illa illa” vem a primeira faixa, também chamada “Waterfall”. Esta parece uma abordagem muito mais violenta, e íntima, dos mesmos tópicos – dor, raiva, vergonha, perda, escrutínio e a dimensão das consequências de uma queda. Diferente do oceano, que é, em si, grande o bastante para recolher e abrigar as mais calmas e mais violentas correntes, uma queda d’água se move em apenas uma direção. Mesmo assim, sabendo que todos os rios correm para o mar, o fim de uma cachoeira pode ser a razão pela qual, independente do quanto ele cante sobre ser varrido pelas próprias lágrimas, “illa illa” também não soa particularmente, nem intensamente, triste; no ondular das ondas, na mesma medida em que ela fala sobre afundar, ela fala sobre emergir. E é justamente por isso que é tão difícil separar essa letra da pessoa que a escreveu – no fim das contas, é um retorno; é uma declaração. Das 12 canções que compõem o álbum, a última faixa é chamada “Próxima Vida” em Coreano, mas “Re-Birth”, “renascimento” em Inglês. É uma música doce sobre amor e destino, mas eu não consigo deixar de pensar em como se torna um termo apropriado para alguém que parece decidido a emergir das águas, tantas vezes quanto for necessário.

“Waterfall” Performance Film. B.I é muito bom e eu preciso que você saia desse post com plena convicção disso.

Uma das minhas descrições favoritas do mar está no Livro de Apocalipse, quando o apóstolo João fala da cidade celestial, a menciona que, diante do Trono de Deus, repousava um Mar de Vidro. Existe uma pequena promessa escondida ali; águas que são tão calmas que se tornam como cristal, um sinal do que vem no final dos sofrimentos, depois do fim dos altos e baixos do mar bravo – paz. Quanto mais eu penso sobre isso, mais percebo que a razão pela qual eu gosto tanto de “illa illa” é porque esperança, mesmo a mais fraca chama, é uma característica que só se encontra em quem passou pelo inferno, mas sobreviveu. Mesmo que a paz de agora seja só a calmaria antes de outra tempestade, se elas ficarem imóveis só por tempo suficiente, e se estivermos dispostos a olhar com atenção por tempo suficiente, elas podem se tornar como um espelho que reflita nossa própria imagem transformada. Um pouco depois de quando nadou em uma piscina das próprias lágrimas, a pequena Alice se encontrou do outro lado do Espelho; ela estava contemplando as profundidades do próprio reflexo e considerando as extensões das distâncias literais e imaginárias que ela podia conceber, para além dos limites das imagens virtuais refletidas em seus olhinhos naquele momento. É exatamente isso que encontramos, se pudéssemos recuperar algo enterrado das profundezas do oceano, ou chegar ao outro lado do espelho – a versão de nós que virá à tona quando as superfícies forem agitadas e despedaçadas, e nós, finalmente, engolidos.

Mas não me entenda mal; na verdade, eu ainda insisto na minha escolha de não pensar demais sobre as músicas das quais eu mais gosto. Eu sempre trabalho duro para resistir à tendência aos solipsismos que a internet imprime em nós sem que a gente sequer se dê conta, então este não é um desses casos, tanto quanto é simplesmente, como mencionei antes, uma forma de ajudar a liberar a música pop da obrigação de fazer muito sentido. Se eu pensar bem, pelo menos desde o parágrafo anterior, estou falando exclusivamente sobre mim, mas, como também mencionei antes, não é possível simplesmente apagar o fato de que WATERFALL contém declarações que podem ser ouvidas com clareza de uma certa distância. Não sou do tipo que gosta de romantizar a dor, muito menos a dor dos outros, mas estou sempre procurando formas novas de dar novas formas à minha, e me desprender até me soltar completamente das razões pelas quais ainda acordo com um pouco de desgosto, e saudade, todos os dias. Minha parte favorita de “illa illa” é a ponte – a promessa de construir outro castelo de areia, mesmo que simplesmente se desmanche de novo; eu não faço ideia do que a areia significa, mas eu creio que é a minha própria matéria-prima que define do que é a feita a praia no canto dos meus olhos. Mesmo assim, não acho que entender isso importe tanto quanto a decisão de continuar recomeçando. Como Arquiteta, sei que, independente do que esteja fazendo no momento, meu chamado na vida ainda é construir alguma coisa. 

“Penny Lane”, the accomplishment of Lennon’s original vision for “In My Life”. 1967.

Depois de lançar “In My Life” em 1965, levou mais cerca de um ano e pouco para que Lennon entendesse como articular os detalhes específicos de seus sentimentos e memórias de uma forma que fizesse sentido como uma música para que outros escutassem, com “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane” (cuja letra, na verdade, é mais creditada ao McCartney). Já passou tempo suficiente para que várias, ou todas, as camadas escondidas na sua música tenham sido trazidas para fora, bem como suas implicações, e multiplicações, mas B.I ainda é um caso em curso, escrevendo a própria história. Talvez no futuro ele também encontre em si a disposição, as palavras e o momento oportuno de falar de formas diferentes sobre sua caminhada, e pode ser que disso saia algo radicalmente diferente daquilo que parece ter sido expresso até agora, porque temos tão pouco controle sobre o futuro quanto temos sobre o passado. E não tem absolutamente nada que possa ser feito a respeito, exceto talvez imaginar, e escrever sobre isso. 

Visualizador de uma das minhas favoritas do álbum, “Daydream”, com participação da cantora Lee Hi.
Minha música favorita dos últimos meses, “Vela Azul” [푸른 돛], Towner & Town Chief (1986). “Mas aquela onda é tão alta, amigo, que acho que deveríamos içar as velas”

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