Querido Pedro,
Peço desculpas por ter demorado tanto a te responder, mas esses primeiros meses foram ainda mais difíceis que eu havia previsto. Entre fuso horário novo, emprego novo, casa nova, cidade nova, a rotina nova… Bom, uma vida toda nova, muita coisa para me acostumar. Mas saiba que eu estou com muitas saudades, e penso muito em você.
Não sei quanta coisa mudou desde que você me escreveu pela última vez, mas fico feliz que você esteja satisfeito com seu novo cargo e suas novas responsabilidades. Eu sei que um emprego novo não cobre todos os buracos do que você perdeu, mas é bom saber que está ajudando. Espero que pelo menos te mantenha ocupado por tempo suficiente. Você já escutou isso de mim muitas vezes, mas não se esqueça: está tudo bem não estar muito bem por algum tempo, mesmo que outras coisas boas estejam acontecendo.
Quanto a mim, estou bem. Eu passei a vida inteira sonhando com o momento em que eu me mudaria, e isso me deixou especialmente apreensiva a respeito de como as coisas seriam quando acontecesse de fato. Por sorte, ao longo dos anos, conforme eu cresci e aprendi que idealizações não levavam a nada além de frustrações, eu me esforcei pra desconstruir a ideia de que a vida começaria sempre amanhã, pra tentar viver melhor o presente. Isso me preparou para me acostumar a viver como rotina o que era só aspiração. As coisas sempre parecem muito bonitas na nossa cabeça, mas a nossa cabeça não tem estrutura para calcular as 24 horas de todos os dias que formam os meses e os anos. É nesses buracos que nossa imaginação não cobre que brotam nossas frustrações – os muitos dias comuns que existem entre um dia extraordinário e outro.
Apesar de tudo, eu tenho consciência de que ainda estou de lua de mel, ficando cada vez mais íntima da minha nova cidade, seus cantos e volumes, e principalmente da janela da minha sala. Meu apartamento é bem pequeno, e a vista não é muito impressionante, mas gosto muito de me sentar lá assim que chego em casa. Eu moro no segundo andar de um prediozinho em uma rua apertada, mas essa vista simples tem feito com que eu me apaixone pela minha vizinhança, e, aos poucos, aqui se torna, de fato, meu lar. Na esquina do meu quarteirão fica uma padaria lindinha, e eu dou uma volta mais longa pra pegar o metrô quando tenho tempo só pra comprar um pain au chocolat quentinho. Minha vizinha de porta cultiva todo tipo de plantas na sacadinha minúscula, e recebe os netos com mais frequência do que eu gostaria. Outra senhora do prédio tem uma filha que é dona de um restaurante vegano onde eu fui almoçar algumas vezes, no fim de semana. E, nos dias em que o horário é conveniente, se eu me sentar bem no cantinho da janela, com a cabeça encostada na parede, consigo ver o pôr do Sol.
Ainda não fiz nenhum amigo, mas está tudo bem assim também. Não é que eu não sinta falta de ter companhia – pois eu sinto – mas, eu, comigo mesma, estou me redescobrindo como indivíduo de todas as formas possíveis. Em algum canto da minha cabeça, eu ainda penso que estou de férias, e que a qualquer momento faço as malas e volto “pra casa” – mas minha casa é aqui agora. Estou trazendo minha alma aos pouquinhos ainda. Eu tenho certeza de que, em breve, vou precisar amarrá-la à um ou outros alguéns, para que ela sinta o peso de uma comunidade, e se agarre com firmeza ao novo chão, mas vou me dar o tempo de flutuar, sem pressa, como se fosse um barquinho de papel num rio. Vai chegar o tempo de jogar a âncora.
Hoje, enquanto te escrevo, estou trancada, doente, sentada de frente pra minha janela, dividindo a atenção entre este e-mail e a rua. O motivo é besta, mas até agora não falei disso com ninguém, e só você poderia me entender como eu mereço. O problema, Pedro, é que eu estou perdidamente apaixonada… Por observar um moço bonito que passa todos os dias pela minha rua, entre 17 e 17:30.
Eu não sei como ele se chama, não sei onde ele mora, mas ele é alto, anda devagar, e sempre carrega um saquinho de papel amarelo-pálido, de padaria. Reparei nele pela primeira vez na minha segunda semana de trabalho, passando na outra calçada, falando ao telefone. Eu sempre tiro os óculos quando ando na rua, mas, naquele dia, atipicamente, eu não os tirei quando saí do escritório. Foi o suficiente pra sentir aquele apertinho no coração que te faz até trocar os pés na hora de dar dois passos, sabe? Fiquei escutando “Sparks Fly” a noite toda, enquanto preparava o jantar, como se fosse uma adolescente apaixonada de novo, imaginando mil cenários em que eu o veria de novo e descobriria o nome, a idade, e onde morava. Dormi e acordei pensando nisso, fui pro trabalho pensando nisso, contei os segundos pra dar a hora de ir embora, escutei Taylor Swift na jornada de volta inteira. Saí da estação nervosa, cheia de borboletas no estômago, olhando pra todos os lados, até que finalmente o vi passando. E no dia seguinte também.
Acredito que ele nunca reparou em mim – estamos sempre em lados diferentes da rua, e ele está sempre olhando para o chão, ou para o celular. Nas primeiras semanas, eu pensava todos os dias em como ia tentar falar com ele, qual seria o nome dele, de onde ele vinha, para onde ia. Eu acredito que ele trabalhe aqui perto, e mora longe, mas não sei dizer se ele vai em direção à estação pra pegar o mesmo trem no qual eu venho, ou se simplesmente entra em um prédio aqui perto mesmo. No fundo, no fundo, queria que ele morasse na minha rua, mas toda vez em que penso nisso, ele se torna uma pessoa, e deixa de ser uma vista.
Aliás, eu me lembro do dia específico em que ele se tornou um ponto na paisagem. Foi uma semana úmida, e, nesse dia, choveu de repente no fim de tarde. Eu estava com meu guarda-chuva transparente, que cobria metade da minha visão, e deixava tudo com cara de lente molhada. Ele quase me passou despercebido naquele dia – estava parado em frente à padaria da esquina, esperando que a chuva passasse, olhando pro céu cinza escuro debaixo de um letreiro neon, azul e vermelho. As gotículas no plástico faziam com que as luzes parecessem ser pequenos vagalumes neon. A chuva não parava de cair, e, da minha janela, eu pude ver que ele ainda esperou por algum tempo antes de decidir se deixar molhar, pra ir embora. Foi a oportunidade perfeita pra descobrir quem ele era, mas eu deixei passar, porque não queria tocar na vista. Era mais bonita assim.
Eu sei, Pedro, eu sei, é quase como se eu estivesse apenas apaixonada por um filme, mas ora essa, eu já me apaixonei por tantos! O que é mais uma imagem em movimento pra quem queria se casar com um desenho animado quando era adolescente? No fim das contas, ele é parte da minha paisagem, ele faz parte do meu processo de descobrir que esse lugar diferente do mundo pode ser meu também. Eu ainda posso mudar a situação em um instante caso pare e pergunte qual o nome dele, mas, enquanto ele for só uma vista, eu sou só uma trabalhadora estrangeira que corre para pegar o trem das 16:30 para chegar a tempo de vê-lo passando, andando devagar, carregando a mesma sacolinha de papel amarelo-pálido, de padaria. Ele não precisa saber quem eu sou, eu não preciso saber quem ele é. É bom o suficiente assim. E se ele for chato, casado, e tiver filhos e um preconceito contra estrangeiros? Seria um golpe duro demais para um simples barquinho de papel, aprendendo a flutuar nesse rio.
Apesar de tudo, a ideia de congelar uma imagem para o meu entretenimento por muito tempo me parece injusta, então eu entreguei para a geometria do Acaso a decisão de fazer com que a gente se conheça oficialmente. A única coisa que eu posso fazer nesse jogo, claro, é criar ângulos. Por exemplo, agora já são 17:27, e ainda nenhum sinal dele. Eu preciso ir à farmácia da rua de cima comprar mais uma caixinha de ibuprofeno. Se eu sair do meu prédio agora, e nós estivermos do mesmo lado da rua pela primeira vez, seria um sinal do destino de que é minha hora de jogar a âncora? Eu gosto de pensar que sim, mas, de qualquer forma, só tem um jeito de descobrir.
Aguardo seu retorno.
Featured Image by Andre Benz on Unsplash
Sensacional, intrigante e tão familiar que parece ser uma cena de um dia da minha vida, amei a ideia da paisagem, aquele “toque do destino” no final me fez rir, obrigado por uma escrita tão leve e com bom tom de melancolia. Me diverti!
É muito interessante pensar que alguém é apenas parte da paisagem, mesmo que esteja na iminência de fazer parte da vida. Ultimamente eu tenho adotado pessoas como parte da minha paisagem virtual, já que eu não tenho saído de casa e sinto que eu deveria conhecer essas pessoas, mas o fato de construir um relacionamento virtual me incomoda demais para isso. Bom, gostei muito do texto e das suas descrições, Amélia (O pseudônimo seria baseado na Amélie Poulain?).