loucura e angústia

…”Não sou louca; sinto perfeitamente as variadas torturas de cada uma das desgraças.”
Constança em Vida e Morte do Rei João, Ato III, Cena 4

Minha avó paterna faleceu ano passado, no primeiro de julho. Mãe do meu pai, minha última avó. Levou embora consigo a pouca energia que eu tinha sobrando, para dar conta do resto de 2024. Nos vimos pela última vez dois anos antes, quando nos despedimos, antes da minha vinda para a Coreia. Tiramos uma foto juntas, da qual eu gostei muito na época, mas da qual não gosto muito hoje em dia. Mas eu a estava abraçando, e é uma das nossas fotos mais afetuosas. Gravei um vídeo dela parada no portão de casa, fazendo corações com os dedos e acenando, enquanto eu ia embora.

Fiz uma chamada com meu pai no fim de semana seguinte. Ele me contou sobre as três semanas que ela passou internada. Era uma segunda-feira, minha tia ligou no meio da noite, e ele foi correndo até a casa delas, porque vovó estava passando mal. Fizera isso várias vezes; ela tinha crises de falta de ar com frequência, às vezes por causa da asma, às vezes por causa da ansiedade. Mas foi diferente, dessa vez. Papai disse que sabia que ela não iria voltar dessa, quando a viu caída no chão, enquanto os bombeiros tentavam reanimá-la.

O último encontro deles foi no domingo, um dia antes. Depois que eu e minha irmã nos mudamos, cuidar da vovó deu forma aos fins de semana dos meus pais. Papai foi sozinho daquela vez; ela estava na cozinha, como de costume, cozinhando algo delicioso (como de costume). Eles conversaram sobre um monte de coisinhas, ele comeu um pouco do que ela estava preparando. Ela disse que seus suplementos estavam quase no fim, então ele prometeu que compraria uma caixa nova ao longo da semana. No caminho de casa, ele passou por uma farmácia, e decidiu parar e comprar os suplementos, porque ele queria que ela soubesse que ele cumpriria a promessa; ele queria que ela soubesse que ele se importava. Sem que ninguém desconfiasse, aquela foi sua despedida: um pequeno gesto de cuidado.

Eu e vovó conversávamos por mensagem quase todos os dias. Nossa última interação também foi naquele domingo, um dia antes do dia em que ela passou mal. Era meia-noite na Coreia, meio-dia no Brasil. Eu estava exausta e fui dormir às 8, acordei lá pelas 11.45, e decidi ir para uma caminhada noturna. Minha cabeça estava cheia de coisas que eu precisava resolver. Eu queria me resolver com alguém, mas aquela pessoa já estava dormindo. Mandei uma mensagem para outra amiga e, no meio disso, respondi a mensagem de “bom dia” da minha avó. Ela não conseguia digitar muito bem, então mandava áudios e dúzias e dúzias de stickers, e eu sempre a respondia da mesma forma. Naquela noite, eu enviei apenas um, em resposta, porque eu estava muito angustiada. Acabei caminhando ao encontro da minha amiga, chorei muito sobre algo que estava me incomodando, e ela dormiu na minha casa, porque eu não conseguia parar de chorar.

Muitos cenários alternativos passam pela minha cabeça, quando penso sobre aquela noite. Fico imaginando o que poderia ter sido diferente. Talvez eu e vovó teríamos conversado mais, se eu não estivesse tão distraída com as coisas que queria resolver. Mas talvez eu sequer teria respondido sua mensagem antes que fosse tarde demais, se não tivesse decidido sair para aquela caminhada. E se aquela pessoa não estivesse dormindo, ou se minha amiga não estivesse acordada. Se eu não estivesse tão cansada, por causa dos amigos que estavam me visitando, naquele fim de semana. Se eu não tivesse ido para a Áustria, onde conheci aqueles amigos. Se eu não tivesse conhecido a pessoa que me contou sobre aquele projeto na Áustria, se eu tivesse ficado em casa naquela quinta-feira à noite em 2023. Se eu tivesse passado na entrevista daquela bolsa de estudos em 2022, e tivesse entrado em outro programa de mestrado, em vez do programa para o qual me apliquei um mês depois. Se eu não tivesse removido um dente siso alguns dias antes da entrevista na qual não passei. Se eu sequer tivesse pensado que estudar na Coreia era uma boa ideia.

Eu sou uma pessoa que pensa demais e não tenho condições de sustentar muitos arrependimentos. Minha solução é sempre fazer todas as coisas que eu sinto que devo fazer, vivendo nos limites da minha consciência em todos os momentos. Eu confio na minha habilidade de bancar tudo o que eu falo; algumas pessoas dizem que nem tudo que fazemos demanda 100% de nós, mas eu discordo. Sou extremamente ciente de como as pequenas coisas que acontecem, as pequenas escolhas que fazemos, se recombinam e se tornam processos e eventos muito maiores. Pode ser o vício dos escritores, a obsessão de encontrar conexões e costurar reações em cadeia, ou traços da minha imaginação sociológica, perdida tentando prever o futuro. Em ambos os casos, estou sempre tentando discernir uma narrativa. E este é um hábito perigoso, a origem de vários vieses cognitivos, a razão pela qual eu não consigo viver sem terapia, mas também é a razão pela qual eu sei que o único sticker que enviei para minha avó, naquela noite, veio do fundo do meu coração. Sempre vem.


Tem um texto que vem ocupando meus pensamentos por alguns meses. Eu não o escrevi ainda, mas tenho tentado há algum tempo. É sobre como eu me sinto sobre a vida. É um tema ridiculamente amplo, a razão pela qual ainda não o escrevi. É assustador porque é algo que quero escrever para me justificar diante do mundo. Não consigo decidir por onde começar porque, em momentos diferentes nos quais pensei em escrevê-lo, senti que precisava justificar partes diferentes de mim mesma (diante de mim mesma, primeiro, depois dos outros). Ao mesmo tempo, eu sempre concluo que existe algo em comum conectando essas dificuldades específicas, e é por isso que ainda penso que existe Um Texto que precisa ser escrito sobre essas coisas. Um dia, em breve, com sorte.


Eu me considero sortuda sempre que sou lembrada que viver é tanto um privilégio quanto um fardo, e que nossa falta de controle é a regra, não a exceção. A morte de uma pessoa querida nos coloca especialmente de frente com essas questões, mas existem outras pequenas mortes pelo caminho. Minha obsessão com narrativas é confrontada pelo quanto a vida pode ser anticlimática. Jovens talentosos morrem em acidentes preveníveis, idosos envelhecem pobres e sozinhos depois de uma vida de amor, serviço e trabalho duro. Tantos esforços sem recompensa, sem reconhecimento, tanto amor desperdiçado. Não tem como explicar e entender todas as pontas soltas na tapeçaria da existência. Talvez por isso eu nunca tenha detestado histórias tanto quanto agora; não existe uma forma de mudar de ponto de vista que faça com que minha situação atual faça sentido.

Mas eu orei por uma vida assim. Há alguns anos, quando dediquei minha juventude à obra do Senhor, pedi que Ele me levasse ou me deixasse onde quer que Ele quisesse, de acordo com Seus planos. Isso significa que meus próprios planos eram secundários, diante do que Ele quisesse que eu fizesse primeiro. Foi um convite a atrasos, desvios e outras inconveniências, no fluxograma de vida que eu havia imaginado para mim mesma. É uma oração que impressiona pessoas, prova do quão entregue eu estou ao Reino de Deus! É menos impressionante quando as coisas começam a acontecer, e você descobre que tem muito menos fé do que você precisa para sobreviver a várias estações vivendo a vida que você não queria viver. Meus sonhos e desejos não estão totalmente direcionados à Eternidade, não tanto quanto eu achava.

Mas nem todos os dias têm gosto de derrota. Estou convencida de que eu experimento com mais frequência que outros, a sensação de que as coisas aconteceram exatamente como deveriam—não uma manipulação de fatos, para sentir que ganhei quando perdi o que eu queria, mas a real experiência da janela do tempo oportuno, quando os eventos que tornaram algo possível foram tão específicos e irreproducíveis, que não poderiam ter ocorrido sem que fossem divinamente orquestrados. Pode ser tão simples quanto ter uma conversa especial e significativa com uma amiga, e reconhecer que aquele momento não teria acontecido se suas circunstâncias fossem melhores, ou diferentes. Em termos de inteligência artificial, é uma pequena vitória de todos os meus esforços de reprogramação. Otimismo não é algo natural para mim, eu tive que construí-lo sozinha. Mas é um desafio, e um hábito, e eu me sinto pouco perseverante ultimamente.

Após a morte da minha avó, entrei em um espiral de arrependimento porque senti que não havia sido digna de me despedir dela, porque estava muito distraída com coisas pouco importantes. No seu último dia na terra, quando ela me chamou para desejar um bom domingo, minha mente estava cheia de outro tipo de arrependimento, de algo evitável, uma dor que eu mesma causei. Como se eu estivesse sendo punida por não ter me resolvido com meu coração partido, algo que nem merecia tanta atenção assim. O lado negativo de certas formas religiosas de enxergar o mundo é o vício de classificar tudo como bênção ou maldição. Tudo o que deu errado, ou que não foi como eu esperava, nos últimos dois anos, foi como uma penitência.

O pensar demais se alimenta de dissonâncias cognitivas, sustentando a crença de que qualquer turbilhão—do presente, passado ou futuro—pode ser resolvido com a linha de pensamento correta. Culpa mantém as engrenagens girando; um senso de responsabilidade torto faz muito para nos convencer de que ocupamos uma posição de muito poder e influência, no grande esquema de fatos e eventos em uma reação em cadeia. Mas o que eu esperava sentir, depois da morte de uma pessoa querida? Me culpar é apenas uma das muitas reações naturais; loucura e angústia caminham juntas onde as razões são insuficientes.


Existe uma versão ideal de mim que não é afetada pelas circunstâncias, uma máquina que nunca falha em prever qual é a melhor micro-decisão a se tomar em todos os momentos. Eu nunca chegarei aos pés dela, porque eu sou uma poetisa, e nasci para me fazer de boba. Eu erro as contas e pago caro, e colho os frutos. Eu carrego o fardo de existir, fazer coisas e deixar traços. Talvez exista uma aspiração mais profunda, por trás das coisas que eu digo nos dias em que mais guardo rancor de estar viva, que é a esperança de jamais ter existido. Sem corpo, sem pecado, sem prazeres, sem recompensas, sem fardos. A medida de controle definitiva.


Ironicamente, do outro lado de todos os “e se?” que me atormentaram depois da morte da vovó, existe um pequeno contra-fato. Originalmente, eu deveria ter voltado para o Brasil naquela época, em agosto ou setembro, mas tive que adiar minha graduação—por causa do semestre que passei indo para a Áustria, e a série de eventos que quebrou meu coração. Se isso não tivesse acontecido, ela teria falecido logo antes do nosso reencontro. Eu tenho honestidade intelectual suficiente para admitir que esse cenário teria sido muito pior para mim. O ponto não é decidir o que foi bênção ou maldição, mas confesso que esse pensamento, no meio de todos os possíveis cenários alternativos na minha cabeça, me ajudou a dormir melhor à noite. Um lembrete de quão pouca perspectiva eu sou capaz de compor. Paz não é uma resposta natural; é uma forma de desistência, e requer algo do qual desistir, primeiramente.


Essa tem sido uma temporada de muitas perdas, menores que a morte, mas provocando os mesmos pontos sensíveis—culpa, arrependimento, ressentimento. Dias em que a alegria dos pequenos prazeres não dura muito. Mais uma vez, tenho que encarar minha humanidade, de formas novas. Já se passaram nove meses, desde a morte da vovó. A razão é invariavelmente post facto; com mais esclarecimento, parece que as coisas são muito simples. A hora da vovó chegou, ela se foi, e isso não tem nada a ver comigo, ou com as coisas que eu posso controlar. E eu sinto falta dela, e vou sentir por muito tempo. Vai doer um pouco menos, em algum momento, mas outras coisas ainda irão me acontecer, que vão doer tanto quanto, ou muito mais. E então, um dia, será minha hora de ir. A despeito de todas as narrativas que eu possa escrever a respeito da minha vida, não há um final diferente possível para essa história. Descanse em paz, vovó. Eu estou indo ao seu encontro.

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