Carta a um amigo que não é visto há muito tempo – Parte I

Querido Augusto,

Ainda me parece estranho falar de você, que já esteve tão perto, mas que agora está tão longe. O estranhamento vem nos pequenos hábitos, coisas tão rotineiras que parecem naturais, até que algo aconteça, que reconcilie nossa imaginação com a realidade dos fatos. Passei muito tempo falando para os outros sobre um amigo que eu tinha, que eu costumava ter, como se ainda fosse fácil passar na sua casa depois do trabalho, para jogar conversa fora até a hora de dormir. Sei que você não gosta da ideia de que falem de você pelas suas costas, e talvez menos ainda que seja eu falando, então peço desculpas se em algum momento dos últimos anos você ouviu falar que eu ainda falava de você. Foi muito difícil deixar a memória da nossa amizade em paz. Tão difícil, que resolvi arriscar contato, mais uma vez, e com uma carta — que vai com um selo especial, que comprei especialmente para sua coleção (espero que não tenha desistido da filatelia).

Desde que nos falamos pela última vez, muita coisa mudou. Talvez você também tenha ouvido falar do que aconteceu na minha vida, sem querer, assim como eu ouço falar de você. Eu e meu pai tiramos do papel nosso plano de ter um negócio juntos. Deu muito certo, mas depois de um tempo preferi deixar que ele tocasse sozinho, e parti para buscar outras coisas. Mudei de cidade, depois de país. Acho que descobri que não gosto da pessoa que sou quando estou perto de casa; me dou melhor com o desafio de construir minha suficiência. Talvez isso seja algo que te deixe feliz, porque sei que você também não gostava da pessoa que eu me tornava perto dos ambientes que me machucaram e rejeitaram quando era criança. Pensei que já havia crescido o bastante para não me preocupar mais com o ímpeto de ser validada por quem me descartou em outros tempos. Mas talvez seja algo com o qual eu tenha que lidar para sempre.

Eu sempre escuto conversas sobre as coisas que você tem feito, mesmo que eu não procure. Algumas pessoas, pelo costume de achar que eu ainda queira saber (e, muitas vezes, quis saber), outras vezes por puro acidente dos fatos e das conversas que tenho por aí. Quase entrei em contato há dois anos, quando ouvi falar que estava de mudança para o Alemanha. Eu, que te acusei tantas vezes de ser um covarde, queria admitir que sempre te achei muito corajoso, e sabia que era uma questão de tempo até que corresse os riscos dos quais tinha mais medo. Tenho curiosidade de saber como se sentiu quando viveu as experiências das quais só ouvia falar, de mim e de outros. Mas você sempre teve uma grande facilidade em ressignificar as coisas. Talvez por isso tenha sido fácil colocar um ponto final na nossa amizade, quando se tornou impossível reconciliar nossas diferenças.

Talvez você nem se lembre, mas hoje são oito anos da nossa viagem para Brasília. Naquela época, eu às vezes já sentia que você não queria mais tanto ser meu amigo, como era antes. Mas aquela semana desorganizada me fez pensar que talvez eu estivesse enganada. Você cuidou de todo mundo, quando o pneu do nosso carro furou no meio de uma tempestade, nossas roupas ficaram encharcadas, os telefones ficaram sem bateria, e ninguém se lembrava do nome do hotel que reservamos. Às vezes me vem à memória a imagem de você correndo na chuva, parando nas lojas de beira de estrada para carregar seu celular, o sufoco para acessar o email da Luana. Eu sentada no banco da frente, brigando com todos no banco de trás, a cabeça explodindo. Os dois litros de chá que tomamos quando finalmente chegamos, e como fizemos uma cabana de cobertores, com o secador de cabelo ligado, esquentando os lençóis.

Pra ser sincera, nem me lembro tanto das coisas turísticas que fizemos, só do quanto estava cheia admiração por você, e por nossos amigos, e a sorte que tínhamos de fazer memórias juntos. Doeu muito como fomos nos afastando aos poucos depois disso, sem que houvesse muito a se fazer, só observar acontecer. Às vezes, uso essas e outras boas memórias como justificativa para continuar apegada, e continuar desejando que as coisas voltem a ser mais como antes, mesmo depois de tantos anos. E às vezes consigo só contemplar o que passou e ficar grata por ter acontecido, por ter estado lá. Mas isso não acontece com tanta frequência. Você sabe que eu não tenho uma grande facilidade em ressignificar as coisas.

Espero de coração que você tenha pelo menos chegado até o fim desta carta, e isso já significaria muito para mim. Mas também, que seja o tempo certo para que eu possa ouvir de você, receber uma resposta. Não precisamos falar sobre o que passou, não precisamos discutir as coisas mal-explicadas e as meias-palavras que ficaram no ar. Muita coisa que parecia ser muito importante naquela época, hoje em dia significa muito pouco. Me importa mais você. Espero que eu também te importe, um pouco.

Estou ansiosa para ouvir de você.

Um grande abraço,

Amélia.

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